quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

XXI - ROMANTISMO, ÉPOCA DE AMOR SUBLIME



Por Deus e por São Francisco, parecia-me que tinha minha iniciativa criadora, de forma estúpida, a benção desses, pois, com o liberalismo, enriquecia mais e mais. Assim se deu o meu pequeno império.
Depois de adequar minha casa ao que queria, comecei a realizar saraus e encontros na minha luxuosa casa. Tinha um negro a recepcionar as pessoas no portão, os senhores e senhoras que compunham a nata dessa sociedade. Hermengarda, uma senhora muito vanguardista, ajudava-me em toda organização. Era a minha acompanhante. Recebia meus convidados pela sala de festa, na qual ocorriam os saraus. Logo de entrada, ofuscava-lhes a luxuosidade de minha casa: tapetes orientais, quadros caríssimos, taças de cristal, empregados ocidentalmente bem apessoados e apresentados, candelabros de cristal e prata, enfim, tudo impecavelmente bem apresentável... toda uma cultura europeia. Os homens que quisessem privacidade para dialogar - enquanto suas decrépitas e feias mulheres ficavam a matraquear escarniciosamente e a observar outros homens que lá se encontravam; sobre filosofia, política, arte, finanças, mulheres, enfim, sobrepujar uns aos outros com suas gabolices fúteis e especulativas – ou até para falarem mal de mim; os acolhia em outra parte mais reservada para que bebessem, grunhissem, fumassem como num incêndio e pudessem cuspir suas entranhas podres de si mesmos nas escarradeiras sem que outros convivas observassem tal horripilante e gosmenta cena. Enquanto isso, no salão receptivo, tinha sempre uma rapariga a tocar maravilhosamente um órgão, pessoas a bailarem, a cantarem, a recitarem poesias, tudo encantavelmente bem feito e produzido.
Tudo ocorria burguesamente muito bem. A sociedade daquela época encontrava-se em minha casa para comer, beber, se divertir, se esbaldar e, o melhor, para falar mal de mim aos meus pés. Mas não de estômago e boca vazias. Tudo era farto. Tudo apolíneo. Hipócritas. Déspotas! Canalhas! De fato, muito se era gasto para essa ostentação.
Em contrapartida, o trabalho que também realizava em meu porão me rendia muito. Lá, ao mesmo sucesso em que ocorria esse esplendor na sala de minha casa, recebia outros homens para se deliciarem numa grande orgia regada a fumo, vinho, jogatinas, mulheres e pederastas. Bacante. Frequentavam pessoas de renome e de importantes cargos sociais. Digo-te, leitor, foi assim que obtive mais facilidade para advogar e principalmente contrabandear.
Embarquei nessa nova empreitada comercial, pelo fato de conciliar duas coisas: primeira, diminuir a procura da orgia longe de casa; segunda, apiedava-me deveras dos marginalizados. Como já disse, não tinha um pederasta nem uma de baixa meretriz que eu não recolhesse, que não botasse dentro de casa, mas não para conviver comigo, e sim lá no porão, onde eram bem tratados. Quando não estavam recebendo ninguém, saiam à rua para distribuir comida aos pobres, pois eu, João Paulo, sempre, sempre fui muito, muito ligado à Igreja, sempre ajudei também financeiramente, e como. Eram meus serviçais. Minha ascensão econômica foi abençoada por Deus e minha dedicação ao próximo, por São Francisco de Assis. Mas eu era católico e não protestante, nem judeu.
Em vida, novamente digo, fui devoto de um santo. Procurava fazer tudo aquilo que a igreja dizia que ele havia feito em vida. Ainda bem que a desgraça não aconteceu em frente à igreja dele. O nefasto ocorreu na descida da Igreja de Santo Antônio da Barra, o casamenteiro. O santo de minha grande devoção foi sempre São Francisco de Assis.
No meu porão se sabia de tudo. Respeitado pelo meu poder econômico eu sempre fui, mas a bebida acabou comigo. Bebia muito, muito mesmo, tentando esquecer a minha procedência. É, meu caro, poderia até agora não parecer, mas sofri muito e sofro por isso. Sempre procurei, através da bebida, tentar esquecer ter sido um filho renegado, bastardo, apesar da presença de dom Mathias, apesar de estudar muito em Coimbra, de ser Bacharel, de minha mãe ter vindo comigo para o Brasil, apesar de todo o dinheiro herdado e multiplicado. Embora tudo isso, não tive a dignidade ou desfavor de conhecer meu verdadeiro pai. Esse optou em continuar seguindo o seu clã a permanecer conosco, porque assim seria excomungado e banido dos seus. Parece-me mais desprazer... Enche minha taça!
Retornado à fuga de minha realidade insatisfatória...
Essa visão empreendedora, capitalista, calculista e fria, durou alguns meses até uma noite inesquecível. Um acontecimento marcou minha vida. Uma visita realizou-me mais ainda, em um dos meus saraus, conheci a mais bela de todas as raparigas e mais interessante também, logo eu. Por ela edifiquei meu tolo coração.
Numa encantadora noite de sarau, em minha luxuosa casa, concomitantemente com os jogos e orgias que ocorriam no porão, recebi além de outras inúmeras pessoas, uma figura que me chamou a mim muita atenção por sua delicada e distinta aparência às minhas retinas uma bela nobre. Ininterruptamente, apaixonei-me por ela, à primeira vista.
Ela, que havia chegado acompanhada por um senhor e mais duas senhoras, intitulava-se da Família Mello. O nome dela era Maria Isabel Cristina Correia de Mello... ou simplesmente Isabel. Disso nunca me esqueço. Como a adorava! Minha Isabel, irmã de Maria, minha princesa, conhecida como rainha por várias histórias e do meu reino, minha libertadora. Que mulher maravilhosa. Uma deusa camoniana. Isabel de bela, de mel, minha Bel no nosso doce refúgio. Por essa mulher tornei-me mais ébrio, na verdade, descobri o real significado da palavra ébrio. Deixei-me levar pelos romancistas de minha época. Cri que o amor poderia ser verdadeiro, o mais sublime dos sentimentos, que estava sendo mais uma vez abençoado por Deus. Por mais que houvesse intempéries em minha vida, o final seria burguês, feliz ou de extrema fuga, de acordo com o que queríamos em nossas leituras contemporâneas.
Segundo um filósofo clássico, diria que senti algo que meu corpo e mente jamais poderiam suportar, uma coisa desenfreada que me tiraria da razão, tornando-me um desvairado, louco, assassino, o Amor. Para ele, o Amor em sua totalidade só existiria fora de nosso mundo; nenhum ser humano seria capaz de amar verdadeiramente. Nossa vã carne não o suporta. Seria necessário transcender, liberta-se da prisão da alma, para que o Amor acontecesse em sua plenitude, era espiritual. No entanto, prefiro o poeta Camões, pois a esse o espírito só tem valor após o corpo experimentar, essa é a celebração da vida. O meu amor por Isabel Cristina sempre foi mais comprometido com o desejo, com o empirismo. Meu amor, essa viagem sem destino, equivalia valorosamente ao amor espiritual. Essas duas concepções povoaram minha mente e fizeram de mim o que fui e relato a ti, caríssimo.
Portanto, tive um destino um pouquíssimo melhor do que o do infortunado jovem Werther. Meus sofrimentos não foram os mesmos, fui mais camoniano, embora não tenha sido muito diferente de Emma Bovary, pactual como Fausto, pessimista como Byron e realista como Flaubert.

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