sexta-feira, 16 de novembro de 2012

XVII - BAHIA DE TODOS OS SANTOS



Santos? Santos sim. Desde criança, embora meus pais judeus, tornei um católico fervoroso. Assim é o povo português. Não haveria lugar melhor para ir. Segundo Avelar, lá eu poderia melhorar o contrabando, pois com meu dinheiro poderia facilitá-lo pelo porto. Portanto, fui sozinho a Salvador. Lá adquiri uma quinta maravilhosa em Nazaré das Farinhas, na antiga rua da lama, chamava-se assim naquela época em que ali morei. Comprei uma outra casa que ficava em Salvador mesmo. Era numa ladeira chamada Nazaré também. Eu tinha o que não sei como é chamado hoje, um local no qual recebia e atendia às pessoas. Afinal de contas, era um bacharel. Ali trabalhava sério, todavia quero deixar claro que sempre fui uma pessoa muito séria. Meu trabalho sempre foi sério, pois, então, achas que contrabando não é uma coisa seria? Se não fizer direito, não dará certo. Tem de ser uma coisa séria. Apesar de ter me formado, fiz mais contrabando quando cheguei ao Brasil do que exercer minha própria área de estudo.
Um mês depois de instalado, trouxe minha mãe, Jônatas, Avelar e sua esposa, que não se desfizeram das propriedades nas Gerais. Dona Hermengarda ficou responsável pelo empório. Vendi a propriedade de Minas, onde permaneci por um ano.
Estabelecendo-me na Bahia, fui e voltei várias vezes porque precisava acertar todo o meu contrabando que vinha de Portugal, da França, da Espanha e de tudo quanto era lugar. O que contrabandeava? Tapetes, roupas, fazendas, tecidos, os mais finos possíveis; bebidas, armas, artigos antigos e muito o que se possa imaginar. Tudo isso chegava por trás do cais, por volta da Barra. Descarregava e passava por trás da Igreja de Santo Antônio da Barra. Lá ficavam as coisas guardadas. Agora, algo que nunca fiz foi tráfico de negros. De resto, contrabandeei tudo o que fosse necessário. E não foi muito... assim... certinho. Não penses que tudo foi só contrabando. Também não foi tanto assim. Desviava algumas coisas. Apresentava aquilo que estava em cima, porém o que estava nos porões ninguém sabia de nada. No Brasil, eu não teria a chance de ser alguém. Cheguei com nome, maior de idade, mas desconhecido. Para continuar sendo alguém, tive de roubar e traficar. Assim sobrevivi: traficando, defendendo o culpado e encarcerando o inocente. A esse último caso, não há nada mais fácil; o inocente, pobre, é culpado à vida inteira, pois só em nascer nessa condição já é um crime. Quando o filho de um homem rico assassinava alguém por qualquer que fosse a razão, eu arrumava uma pessoa pobre para que assumisse a responsabilidade do ato e fosse presa. Tempo depois, dava um jeito para que ela fosse libertada ou que fugisse e mandava–a para um lugar distante com outro nome.
Não sei para quem ficaram os meus bens. Foi assim que fiquei rico, ou seja, mais rico. Num período de cinco anos residindo na Bahia, já era um homem respeitado pelo comerciante que era, pelo bacharel requisitado, enfim, pelo poder financeiro que já ostentava perante a sociedade.
Tudo o que fiz, tudo o que deixei de declarar, não sei como posso revelar isso hoje, mas todo o meu contrabando era guardado dentro da igreja de Santo Antônio da Barra. Embaixo, nos porões, ali guardava tudo. Ninguém nunca procuraria nesse lugar. Nunca! Eu tinha acesso por ali, pela passagem feita por negros eu passava. Não havia lugar melhor, mesmo porque já falei que sempre fui católico fervoríssimo. Minhas contribuições à Igreja sempre foram generosíssimas. E aqui sentado a ti falo, onde? Como? Não vês? Nada disso importa! Põe vinho em minha taça e me sirve. Meu charuto apagou; ofereçe-me outro.
Lembra-te de quantos dias depois retornei como espírito? Lembra-te do que usaram para me trazer de volta? Minha capa de veludo, isso mesmo. Naquela época sim, sabia-se montar um espírito de morto... ou como diziam os iorubanos, egum. Hoje não, acabou. Infelizmente, nesse momento, não me lembro do nome de quem me montou, não sei. Mas era alguém conhecido por mim, pois eu tinha os negros muito bem tratados. Eu nunca velei a ninguém que fui a favor da libertação dos negros. Jamais seria contra! Não te esqueça que minha mãe era uma negra da cor do cacau.
Desde sempre, caro filho e leitor, quando se fala em negro, todo mundo imagina uma porção de cabelo duro, canelas finas, escravo, fome, um arco, flechas, pulando de árvore em árvore igual a macacos, mas por quê? Todos são condicionados pelo Ocidente. Sê hipócrita, não serás o primeiro nem o último, dize: “eu não sei!” Essa é a concepção quando se fala de negro. Engraçado é o antagonismo. Quando se fala de branco, imaginam-se altos palácios, castelos, pureza, conhecimento e sabedoria.
A pele de minha mãe era como cacau, uma mulher lindíssima, agora, como ela conseguiu, com a pele dessa cor, ter cabelos escorridos e azulados olhos semiesbugalhados, não me perguntes? Os meus olhos eram verdes como os amendoados de meu pai, segundo Judite.
Enfim...
A tudo agradecia aos santos pela minha assunção. Tanto que todo domingo ia, juntamente com minha mãe e Jônatas e os Avelar, à Igreja rezar. Eles não eram convertidos ao catolicismo. Iam à Igreja por mim e pela sociedade. Não podiam dizer que eram judeus, nem que eram a favor. O que faziam religiosamente era escondido. Só tinham um Deus. Agora, não sei se marroquinos, semitas, caldeus, sicranos, de onde vieram, tinham um só Deus. Só sei que fomos parar na Bahia, onde tudo em quanto lugar tinha Deus lá dentro. Lá aprendi amorosamente a conhecer o deus Ogum, a deusa Iemanjá, a deusa Oxum, o deus Xangô. Para os negros de lá, toda a natureza é Deus, pois ela o representa. Imagina a confusão que nossas cabeças viraram. Ô terra de todos os santos! Assim foi construída a concepção de minha saudosa Bahia por esse meu povo tão sofrido. 

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