sexta-feira, 16 de novembro de 2012

XVIII - OS PEDROS E OS NOBRES



Em 1883, no dia doze de junho, meu corpo, esse jaz no chão, cinco anos antes da lei áurea. Eu não tive a felicidade de presenciar a libertação dos negros. Não tive esse prazer; faltaram-me cabeça e poucos anos para isso. Mas na minha ocasião movimentos abolicionistas já existiam e quem era simpatizante praticava às ocultas. Tudo às escondidas, porque, desde que D. Pedro I, esse imoral e indecente, que no dia sete de setembro de mil novecentos e vinte e dois estava bêbado (para mim não é mais problema asseverar isto, somente não sei se acreditarás), assumiu o poder, vivemos uma grandiosa mentira. Esse homem nunca separou nada de ninguém. Era um alcoólatra, um covarde. A história do Brasil não é contada verdadeiramente. É difícil aceitares isso? Ele nada fez. Quem planejou tudo foi a mulher dele. Essa história de que se levantou e gritou ficou sendo a conveniente, pois era isso que a sociedade (compreendas que essa palavra aqui contraria o seu sentido totalizante) desejava que acontecesse. Pouco tempo depois, não resistiu a toda pressão que o povo punha nele, desde antes. Quando o chamaram para retornar a Portugal, comprometeu-se, diante do povo, que permaneceria no país, mas só sabia participar de badernas e de doações de grandes lotes de terra, para mulheres, mulheres e mais mulheres com quem tinha filhos, com quem se deitava, com quem trocava doenças. Provavelmente, morreu cheio de sífilis!
Por fim, foi obrigado a partir, a ir embora e deixar aqui o seu filho. Haveria de deixar um regente tomando conta. Esse homem sim, D. Pedro II mereceu tudo o que lhe foi direito; justo, honesto, amante das artes e das letras e meu amigo. Procurou elevar tudo isso a uma cultura muito grande. Mesmo assim, quando se pensava em libertar os escravos, já havia facções que ansiavam derrubá-lo. Eram aqueles conservadores que faziam parte do militarismo, que comandavam as forças armadas que havia naquela época. Embora Caxias tenha sido assistido para a manutenção da integridade do império, ele era um racista e destruidor de quilombos. E também não podemos esquecer dos republicanos.
No tempo do Império, no tempo de Pedro II, muitas vezes fui ao do Rio de Janeiro. Por inúmeras ocasiões fui à terra de Pedro, Petrópolis – capital do Império -, visitá-lo no seu Palácio de Verão. Nessa época atual tua, não acredito que se encontre algo com o nome de João Paulo da Costa, pois na minha época de vida, quando se morria em desgraça, o nome de qualquer um era varrido de tudo e, como não tive herdeiros, meus bens todos foram tomados, tudo, pois, se alguma mulher pariu algum filho meu, eu não tomei conhecimento.
Em vida, certamente, não poderia escrever tais asseverações, pois baseada em que história é essa contada? Minha vida. Como se fala da ficção de um homem que mentiu, não separou nada de ninguém? Essa ficção tem endereço exato.
Presta atenção numa coisa muito séria: muitas pessoas naquela época escreveram e seus livros foram queimados, suas casas destruídas, suas famílias e corpos foram salgados. Não sei como são os atos de repreensão hoje. Contudo, não possuo mais corpo para ser torturado! Apenas conto parte de uma história, da época em que vivi. Acredito que, se desejas alumiar meus caminhos, não precisarias saber de tantos acontecimentos, não precisaria falar de uma independência de mentira, no entanto, que maravilhoso! Quem sabe assim, depois desse relato, eu vá direto para o céu!
Talvez algum dia alguém que estude a história, que tenha acesso a todo um acervo de documentos, que não tenham sido danificados ou alterados ainda, como já disse anteriormente, consiga fazer esse povo ver que, se houve realmente um afastamento da corte real de Portugal que aqui estava, foi graças à mulher de Pedro I e não a ele. Era um beberrão, um fanfarrão, imoral, indecente. Sua corte era podre e imunda! Eu não conheci o pai de D. Pedro I, mas se sabe que, segundo a falácia na corte, era um porco.
Essas coisas, que hoje se ouve falar dos salões, nobres com dentes bonitos, por exemplo, são mentiras. Onde viste isto? A maioria tinha seus dentes podres, limpavam a boca no gibão, tomavam banho de ceroulas, quando tomavam. Em contrapartida, os pederastas e as mulheres de baixa meretriz, os marginalizados, eram muito mais limpos. Eles não se deitavam com os nobres, sem que esses não tomassem banho. Eles eram lavados. As glandes, o pênis tinha de ser limpo porque fedia a podre. Isso tudo é a história que desejas saber? Tens certeza?
O rumo da história é como um rumo de rio: se mudar, seca. O passado não pode ser destruído. O presente vive no passado almejando o futuro. Águas passadas não movem o mesmo moinho. É só represá-las que moverão outro. Tiradentes, o mártir com cara de Jesus? Esse grande maçom não morreu enforcado. Morreu foi um pobre mendigo, pois a Maçonaria não deixaria. A história de Maria Quitéria acabou quando pegou seu marido com as nádegas voltadas para outro homem. Francisco de Assis, que dançou nu antes de se tornar um homem santo, morreu de sífilis. As pústulas não eram as marcas de Cristo, pois a doença já estava escondida nele. E assim vai.

XVII - BAHIA DE TODOS OS SANTOS



Santos? Santos sim. Desde criança, embora meus pais judeus, tornei um católico fervoroso. Assim é o povo português. Não haveria lugar melhor para ir. Segundo Avelar, lá eu poderia melhorar o contrabando, pois com meu dinheiro poderia facilitá-lo pelo porto. Portanto, fui sozinho a Salvador. Lá adquiri uma quinta maravilhosa em Nazaré das Farinhas, na antiga rua da lama, chamava-se assim naquela época em que ali morei. Comprei uma outra casa que ficava em Salvador mesmo. Era numa ladeira chamada Nazaré também. Eu tinha o que não sei como é chamado hoje, um local no qual recebia e atendia às pessoas. Afinal de contas, era um bacharel. Ali trabalhava sério, todavia quero deixar claro que sempre fui uma pessoa muito séria. Meu trabalho sempre foi sério, pois, então, achas que contrabando não é uma coisa seria? Se não fizer direito, não dará certo. Tem de ser uma coisa séria. Apesar de ter me formado, fiz mais contrabando quando cheguei ao Brasil do que exercer minha própria área de estudo.
Um mês depois de instalado, trouxe minha mãe, Jônatas, Avelar e sua esposa, que não se desfizeram das propriedades nas Gerais. Dona Hermengarda ficou responsável pelo empório. Vendi a propriedade de Minas, onde permaneci por um ano.
Estabelecendo-me na Bahia, fui e voltei várias vezes porque precisava acertar todo o meu contrabando que vinha de Portugal, da França, da Espanha e de tudo quanto era lugar. O que contrabandeava? Tapetes, roupas, fazendas, tecidos, os mais finos possíveis; bebidas, armas, artigos antigos e muito o que se possa imaginar. Tudo isso chegava por trás do cais, por volta da Barra. Descarregava e passava por trás da Igreja de Santo Antônio da Barra. Lá ficavam as coisas guardadas. Agora, algo que nunca fiz foi tráfico de negros. De resto, contrabandeei tudo o que fosse necessário. E não foi muito... assim... certinho. Não penses que tudo foi só contrabando. Também não foi tanto assim. Desviava algumas coisas. Apresentava aquilo que estava em cima, porém o que estava nos porões ninguém sabia de nada. No Brasil, eu não teria a chance de ser alguém. Cheguei com nome, maior de idade, mas desconhecido. Para continuar sendo alguém, tive de roubar e traficar. Assim sobrevivi: traficando, defendendo o culpado e encarcerando o inocente. A esse último caso, não há nada mais fácil; o inocente, pobre, é culpado à vida inteira, pois só em nascer nessa condição já é um crime. Quando o filho de um homem rico assassinava alguém por qualquer que fosse a razão, eu arrumava uma pessoa pobre para que assumisse a responsabilidade do ato e fosse presa. Tempo depois, dava um jeito para que ela fosse libertada ou que fugisse e mandava–a para um lugar distante com outro nome.
Não sei para quem ficaram os meus bens. Foi assim que fiquei rico, ou seja, mais rico. Num período de cinco anos residindo na Bahia, já era um homem respeitado pelo comerciante que era, pelo bacharel requisitado, enfim, pelo poder financeiro que já ostentava perante a sociedade.
Tudo o que fiz, tudo o que deixei de declarar, não sei como posso revelar isso hoje, mas todo o meu contrabando era guardado dentro da igreja de Santo Antônio da Barra. Embaixo, nos porões, ali guardava tudo. Ninguém nunca procuraria nesse lugar. Nunca! Eu tinha acesso por ali, pela passagem feita por negros eu passava. Não havia lugar melhor, mesmo porque já falei que sempre fui católico fervoríssimo. Minhas contribuições à Igreja sempre foram generosíssimas. E aqui sentado a ti falo, onde? Como? Não vês? Nada disso importa! Põe vinho em minha taça e me sirve. Meu charuto apagou; ofereçe-me outro.
Lembra-te de quantos dias depois retornei como espírito? Lembra-te do que usaram para me trazer de volta? Minha capa de veludo, isso mesmo. Naquela época sim, sabia-se montar um espírito de morto... ou como diziam os iorubanos, egum. Hoje não, acabou. Infelizmente, nesse momento, não me lembro do nome de quem me montou, não sei. Mas era alguém conhecido por mim, pois eu tinha os negros muito bem tratados. Eu nunca velei a ninguém que fui a favor da libertação dos negros. Jamais seria contra! Não te esqueça que minha mãe era uma negra da cor do cacau.
Desde sempre, caro filho e leitor, quando se fala em negro, todo mundo imagina uma porção de cabelo duro, canelas finas, escravo, fome, um arco, flechas, pulando de árvore em árvore igual a macacos, mas por quê? Todos são condicionados pelo Ocidente. Sê hipócrita, não serás o primeiro nem o último, dize: “eu não sei!” Essa é a concepção quando se fala de negro. Engraçado é o antagonismo. Quando se fala de branco, imaginam-se altos palácios, castelos, pureza, conhecimento e sabedoria.
A pele de minha mãe era como cacau, uma mulher lindíssima, agora, como ela conseguiu, com a pele dessa cor, ter cabelos escorridos e azulados olhos semiesbugalhados, não me perguntes? Os meus olhos eram verdes como os amendoados de meu pai, segundo Judite.
Enfim...
A tudo agradecia aos santos pela minha assunção. Tanto que todo domingo ia, juntamente com minha mãe e Jônatas e os Avelar, à Igreja rezar. Eles não eram convertidos ao catolicismo. Iam à Igreja por mim e pela sociedade. Não podiam dizer que eram judeus, nem que eram a favor. O que faziam religiosamente era escondido. Só tinham um Deus. Agora, não sei se marroquinos, semitas, caldeus, sicranos, de onde vieram, tinham um só Deus. Só sei que fomos parar na Bahia, onde tudo em quanto lugar tinha Deus lá dentro. Lá aprendi amorosamente a conhecer o deus Ogum, a deusa Iemanjá, a deusa Oxum, o deus Xangô. Para os negros de lá, toda a natureza é Deus, pois ela o representa. Imagina a confusão que nossas cabeças viraram. Ô terra de todos os santos! Assim foi construída a concepção de minha saudosa Bahia por esse meu povo tão sofrido. 

XVI -À NOVA FRANÇA!



Eu, minha mãe e Jônatas partimos em boa hora de Portugal, em 1866. Antes de irmos para Salvador, para residirmos, fomos para Minas Gerais. Nesse lugar, comecei a aprender o melhor de tudo: o contrabando. Dali começou tudo. Lá conheci um homem chamado Lourenço... Lourenço de Avelar, isso! Tinha, por esposa, uma mulher com o nome muito desgraçado que era... Hermengarda, ô nome desgraçado esse! Hermengarda... era esse mesmo o nome dela. Nós na casa dos Avelar ficamos hospedados. Mas logo depois compramos uma casa par morarmos.
Lourenço tinha é... é, como se diz... ele tinha um empório também, mas vendia comida: farinha, fubá; tinha um empório no qual vendia comida.
Ele era muito amigo de Judite e Jônatas. Veio para o Brasil de Portugal, justamente, fugido. Era da mesma crença deles. Foi uma confusão desgraçada e ele estava nas Gerais. Desde a época das Capitanias, aqui no Brasil, tempo das Minas Gerais, ninguém podia ser judeu. Ainda queimavam abertamente muita gente por causa de religião. A burguesia inventa a história de acordo com seus interesses. É muito fácil: presume-se uma data e joga-se a informação... pronto e acabado! Quem questionará? Como? Vê esta minha história, ocorre o mesmo. É um fato real ou ficcional. Não esqueças de que o nome Costa é muito respeitado, tem tradição.
Retornando...
Quem conhecia era Judite, porque ele já havia vindo fugido de Portugal para cá. Nós viemos para cá com tudo acertado. Só não aconteceu nada de errado por causa do meu nome, Costa. Ninguém me questionou, pois não tinham a cara de meu pai para comparar. Ele era respeitado, mas ninguém conhecia seu rosto. O que importa? Eu tinha dinheiro. E também não era negro-negro. A mistura de uma pessoa de pele escura com uma de pele clara dá um negro? Nunca!