Os
imutáveis e pseudomeses primaveris a um outro mês haveriam de dar lugar. Cedo
ou tarde outra estação assumir-se-ia. Pois, segundo a filosofia, a mudança é
inevitável.
Meu
pai adorava sua tribo, sua raça, sua liberdade; desde criança tivera esses
ensinamentos, nunca havera escondido sua condição. Recebera uma educação
meticulosa, à maneira do pai e dos cãs. Era nômade porque era tradição o
indivíduo procurar o conhecimento junto a todos que pudessem compartilhá-lo.
Por isso, não poderia ficar para trás, era o sucedâneo, possuía o sangue, era o
desejo e toda uma descendência. Por conseguinte, apaixonara-se por uma mulher
do mundo, do mundo de que ele não fazia parte, do mundo que a ele não era
permitido a permanência definitiva.
Percebe,
o existencialismo é cruel e truculento; não permite que haja diálogo e acordos
que contemplem a duas partes: dois caminhos distintos, a dicotomia. Isso ou
aquilo. Maldito seja! Ou minha mãe acompanharia Juan ou vice-versa. Porém, um
não seguiu o outro. Veredas desiguais seguidas.
No
início, a família não havia aceitado o envolvimento, no entanto não tinha o que
fazer. Ela gostou dele e era uma mulher livre mesmo sendo governanta. Só que os
Costas estavam de malas prontas para uma breve estada na França.
Enfim,
poucos dias após, Judite, com os Costas, viajara rumo à Lisieux, deixando para
o pretérito o seu amor. Em momento algum, hesitou ou esperou alguma resposta
dele; como já disse, era decidida e austera em seus ideais. Ela jamais negou
seu incondicional amor, mas omitiu que havia sido fecundada. Com sua partida
para Lisieux acabara a união ilícita advertida pelos Costas e a tribo.
Entre
Juan e Costa não havia relacionamento. Só comércio, no qual aquele conhecera
Judite. Costa, o homem que me criou, nunca o conheceu pessoalmente, se me
lembro bem. Os Costas já se encontravam a caminho da França quando ela partira
com meu tio e outros, após ajeitar as coisas comerciais pendentes.
Acredito que Juan nem soube que foi meu pai. Ele só não podia ficar com ela,
porque era uma judia e ele, um cigano. Não poderiam se juntar. Vede bem, Juan
não foi um cigano como se fala hoje. Vivia em tendas, coisas muito grandes. Era
um conquistador de tudo que se possa imaginar – terras, lugares, mulheres etc.
Criava muitos cavalos, dos quais tinha um fascínio incrível, como já havera
dito.
Penso
que minha mãe não voltou a vê-lo. Talvez tivesse morrido sem saber que nasci,
caso tenha sabido da gravidez. Ou então achas que se eu soubesse do paradeiro
exato dele não iria atrás ou ele... mandado me buscar?
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Com
certeza que teria! Mantive os pontos comerciais na Europa e África também por
isso.
Vê
que, de Lisieux até o dia de minha morte, não se falou mais dele, à exceção das
vezes em que indaguei sobre a existência dele, desde após minha mãe ter me
revelado a minha real procedência.
Foi
apenas um mero acontecimento. Do dia que Judite deitou-se com ele, dos tempos
que se encontraram e que saiu da Espanha para a França, não soube nunca de
minha mãe ter escrito para ele ou ter comentado sobre o nascimento. Também não
poderia, porque o Costa já havia me registrado. Esse me bancou em toda minha
vida, não foi Juan de Córdoba. Fui para o Brasil com o dinheiro dos Costas, com
o nome dele.
Que
aceitação teria eu? Judite é que não poderia me assumir. Ninguém sabia dela
como minha mãe. No Brasil, ela se vestia tal como poderia vestir-se, andava
normalmente como os daqui. Ela não poderia ter filhos, sequer se apresentar, de
maneira alguma, à frente da sociedade como realmente era. Não poderia ser; de
que jeito seria? Mãe sem pai? Juan também não poderia assumir um filho; como
criaria? Jônatas?
Quando
nasci em Lisieux, minha mãe sabia que, estando com os Costas, eu estaria bem.
Como viajavam muito, logo me achariam filho legítimo deles, caso contrário,
considerar-me-iam filho do mal, do adultério entre o Costa e Judite. Pelo fato
de a mulher do Costa ser doente e fraca para ter filhos, foi comodável ficar
como filho dela.
Enfim,
meses depois de partir, num dia invernal – provavelmente entre dezembro a
fevereiro – Judite deu-me à luz em Lisieux. Subtrai nove meses antes para estimardes
o período da partida. Surgi para o mundo na França pela coincidência dos Costas
e Judite estarem ainda por lá, enquanto Juan estava, possivelmente, em Córdoba,
acredito.
Não
sei se Juan, após meu nascimento em Lisieux, ficou, saiu ou morreu na Espanha.
Ou se seguiu o povo que o acolheu, visto por mim em sonho. Caso seja esta
última, provavelmente trocou todos os seus trajes para poder se vestir como os
integrantes de sua sociedade. Entendo, então, que tenha feito moradia lá. Ele
tinha pátria, mas ficou naquele lugar, porque se amasiou com Judite. Tinha de
ficar; ela é quem não ficaria. Tinha de acompanhar os Costas. De Lisieux, onde
me pariu e que imediatamente tornei filho dos Costas, fomos embora para
Coimbra. Acho que não teve notícias dele, nem dela.
Calma!
Deixa molhar minha seca garganta, pois falo demais. Quem sabe eu me recordo de
algo que confunda a ti e me desdiga ou corrija...
Pode
parecer gracejo meu, por conseguinte não é. Vinus est veritate. Após
bebericar, agora me lembro. Juan despediu-se dela em Lisieux. É... ? Disse-lhe
que não poderia ficar nem assumir a criança, pois não tinha como; Judite não
seria aceita. E eu que pensava que o amor fosse transcendental! Idiota!
Infantilidade! Culpa de minhas leituras, de uma época, de minha época. No
entanto, a ironia que aprendi com estas mostrou-me a real e não verdadeira
sociedade. Agora, se realmente não soube de mim, prefiro a versão de que tenha obtido
ciência do meu nascimento.
Mas
de algo tem plena certeza, leitor, faze constar que todos nós fazemos parte de
uma família de beberrões!
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