segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VI - OS POVOS DE MEUS PAIS CONSANGUÍNEOS

Meu pai era descendente de um povo do oriente que havia surgido na civilização hindu, uma das mais remotas culturas urbanas conhecidas na Índia, e que havia sido absorvida pelo povo Caldeu e assim por diante. Eu não tenho condições de afirmar para ti que isso é verdade ou mentira, pois eu nunca vi um caldeu no plano natural e muito menos no sobrenatural, não sei que povo foi esse, nem como possa sê-lo ou tenha sido.
Segundo Judite, antes dos caldeus subjugarem a Judeia, meus ancestrais paternos haviam invadido culturalmente e espiritualmente um lugar, que hoje é chamado de Israel, onde a maioria da população era judia, todavia, alguns com o advento de diversas ocorrências históricas converteram-se ao islamismo. Dizia que eles se tornaram descendentes de um homem que com o nome dele haviam batizado um determinado lugar, Canaã, antigo nome da Palestina quase totalmente ocupada pelos israelitas e judeus. Esse era filho de Cam, o ancestral dos povos africanos, é o que dizem, mas quem foi realmente Cam? Segundo meus estudos religiosos aplicados a mim na infância, foi o filho amaldiçoado pelo próprio pai por não o ter reverenciado num dia que estava completamente bêbado, como um gambá, e nu. Idiotice! Maldição essa, que está relatada no livro sagrado dos cristãos, a Bíblia, explicaria, então, todo o sofrimento passado pelos povos africanos? É vergonhoso, degradante.
A partir desse diante, o povo do meu pai que era palestino mesclou e adjuntou sua cultura com muitas influências, envolvendo-se com a do Egito, até chegar ao país Marrocos. Através desse, o Islão, que surgiu para o mundo como eclode a aurora após findar a turva e misteriosa noite, engenhadora de segredos mil, como em As mil e umas noites, penetrou no ocidente através do sul da Espanha pelo estreito de Tariq. Infelizmente, eu não estudei essa história e sua ramificação, estudaste? Recordo mui longinquamente de uma obra, Eurico, o Presbítero. O meu ensino sobre o povo do oriente foi bastante nacionalista e maniqueísta.
O marroquino Juan, meu pai, contou outras coisas, mas destaco para tal sequência do capítulo façanhas dos seus ancestrais mais recentes na Espanha Islâmica.
A expansão dos meus ancestrais paternos árabes sobre a Península Ibérica foi enredada e extensa. Os árabes do norte do Marrocos venceram os visigodos com ajuda dos bérberes convertidos atravessando o estreito de Gibraltar. Deste ponto, os omíadas pertencentes ao mesmo clã de Maomé, em Damasco, seguiram a conquistar vários lugares da Espanha, tornando-os muçulmanos e estabelecendo uma capital em Córdoba, província do Islã sob a soberania dos califas desse povo deles. A Andaluzia tornou-se uma mistura de etnias e culturas, em que conviviam árabes, bérberes, mossárabes (população cristã existente na península antes da invasão), judeus, ciganos e escravos com seus filhos que se converteram ao islão. A união entre agarenos, que se denominavam superiores, e bérberes não era mais a mesma; uma revolta ocorreu com a insatisfação social generalizada. Assim chegou ao fim a dinastia omíada e iniciou-se a da abácida capturando Damasco. Quando isto aconteceu, um emir escapou de lá fazendo uma longa viajem para a Espanha assistido por árabes fiéis aos omíadas. Logo, obteve o controle da cidade de Córdoba, reestruturalizando e declarando-a independente do califado central em Bagdá e ao califado abácida, no entanto, reconhecendo a hegemonia religiosa do califa. Tornou-se o emir da Andaluzia. Neste local, foi construída uma civilização em muito superior a qualquer outra até então conhecida do ponto de vista cultural, da vida intelectual e da grande mesquita de Córdoba.
Ao passar de algumas centenas de anos, por consequência de focos de resistência cristã, representando uma ameaça real ao poderio maometano, o governo islâmico pediu ajuda aos almorávidas, dinastia e seita medieval muçulmana bérbere do Marrocos, norte da África. Eles os assistiram exterminando a revolta cristã, porém, tomaram o poder para si próprios. Os almorávidas construíram um império, que abrangeu a maior parte do norte da África e boa parte da Espanha. Fundaram a cidade de Marrakesh, esta passando a ser a capital do reino almorávida. A Andaluzia foi transformada numa simples província do país africano. No entanto, não duraram muito tempo à frente do poder. Dificuldades e abusos econômicos geraram revoltas. Novos bérberes xiítas conhecidos por almôadas acusaram os almorávidas de corrupção e opressão. Eles conquistaram e deram fim às autoridades dos almorávidas. Os almôadas sitiaram e reconstruíram Andaluzia. Desta vez tendo Sevilha como centro do mundo islâmico no ocidente. Conseguiram conter o progresso da armada cristã. Entretanto, problemas e antagonismo entre forças contrárias internas debilitaram o califado Islão ocidental. Os reinos católicos de Castela e Aragão unidos por casamento restringiram-nos a apenas um reino-estado fundado pelos próprios mouros, tornando-se o mais prestigiado núcleo da cultura muçulmana na península, ao sul da Espanha. Com as progressivas conquistas territoriais cristãs, os mouros renderam-se a elas. O último reduto, Granada, foi invadido, sendo esse o tiro de misericórdia para a reconquista e término da dinastia muçulmana no ocidente. Mas em hipótese alguma, o Cristianismo propagado pelos reis conseguiu desenraizar a riquíssima cultura árabe contida no espírito dos filhos dessa terra do poente. Mesmo porque, os marroquinos e mouros (árabes em geral) possuíram muitas mulheres para dar fim às dinastias e à linhagem sanguínea inimigas, além de raptarem mulheres para desposarem. Fizeram muito isso. Assim ficaram enraizados lá os costumes e famílias que também compraram e adquiriram muitos bens. Muitos se converteram, mudando seu grupo religioso em prol da permanência no país.
Corroborando mais a história, minha mãe dizia que meu pai vinha de uma família amaldiçoada e que jamais eu dissesse. Esta é a única informação da qual tenho certeza sobre a procedência dele: ele e toda família eram oriundos de uma tribo considerada maldita desde os fatos do princípio até os da atualidade.
Eu desconheço essa mesclagem toda, a começar da Índia, e nem sei decerto como ele foi parar e o que fazer em Cádiz. Sei que sou o narrador, mas, por favor, não me comprometas! Anseio que suportes com resignação requerida a nervos de aço, porquanto, estou morto, a que me adiantaria reflexionar? Eu não desejo. Agora, chegará o momento para reflexões. De acordo com o que sei, só me há o quê para contar-te.
Agora, passando para a história de minha mãe, não entendo até hoje essa ênfase na diferenciação das origens dos dois; a dela é quase idêntica à dele!
O povo de minha mãe não foi respeitado. O único povo do oriente que teve seu devido respeito foi o egípcio, pois escapou de ser considerado negro (entretanto, dizem que as várias rainhas da dinastia egípcia dos Ptolomeus, chamadas de Cleópatra, eram negras), os outros não... não! Seu povo também viveu em Israel. Ela era descendente de Sem, irmão de Cam, pois dizia ser de uma tribo semita, mas como chegara ao maior país da África, o Sudão, disto não sei. No entanto, aprendi que a histórica Núbia, que era grande parte do Sudão, é camita. Mas ela dizia semita e disto sei muito bem, lembro-me de quando comentava muito precavida. Contudo, se ela era filha de descendente de Sem ou Cam, filhos de Noé, não há provas, pois não havia nenhum registro e nenhuma separação territorial, levando em conta que ambos os povos residiram em Israel. Porém, para mim que fui seu filho, ela realmente era semita. Para ela, foram os próprios judeus, habitantes de Israel, que anunciaram o início e se converteram ao islamismo. Todavia, em apenas uma coisa meus pais concordavam, segundo minha genitora, além do amor mútuo: adoravam a um único Deus somente.
Não eram a favor de religiões ou de dogmas, pois são elas que causam toda divergência de ideias definidas como as intocáveis e corretas a serem seguidas pela humanidade de acordo com a vontade de Deus (este que eu, mesmo pós-morto, até hoje não o vi), ou melhor, de acordo com a vontade do Deusomem. A religião, como disseram posteriormente a minha vida na terra, é a substância que adormece a inteligência causando a alienação do povo. Quão grandiosa verdade!
Meus pais, por causa da paixão, tornaram-se prosélitos, partidários da cultura e religiosidade do outro.

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