quinta-feira, 19 de julho de 2012

IV - A HISTÓRIA DE ANTES DE MIM

        Corria o ano santo de 1836, quando o prenúncio de minha vinda para este mundo teu aconteceu. Nesta época, minha mãe servia há um bom período de tempo a uma família tradicional. Era governanta de uma casa portuguesa. No momento, eu não me lembro, para este capítulo, a que família servia, mas era de Portugal – espero que adiante eu me recorde... não! Mil perdões! Tantos são os fatos não lembrados que quase cometo um grandioso equívoco. É óbvio que sei o nome da gente a quem ela trabalhava: família Costa. O que não recordo agora são os nomes dos componentes. Novamente, perdão.
Judite era uma pessoa sábia com nível cultural acima da média. Sabia ler, escrever, falar várias línguas e não somente uma: árabe, francês, espanhol, português e também o idioma dela, que eu quero me lembrar, mas como chamava o idioma peculiar a sua região... era aquele que os judeus semitas falavam, como se chama a língua dos judeus? Não era o iídiche. Sim, minha mãe falava aramaico. Com todos esses requisitos linguísticos, era governanta e intérprete. Uma grande negociadora, seu principal papel destacável nessa família. Era uma criatura de alta confiança, que, como disse inicialmente, ela servia há alguns anos.
Ela era sudanesa, contudo, não foi em solo materno que conhecera essa família. Foi num outro país negro, no Marrocos. Ela encontrava-se em Rabat, em um tempo bastante anterior ao do início do capítulo.
Minha genitora era uma mulher madura, livre e desimpedida, e seja dito de passagem que ela nunca se casou mesmo havendo pretendentes. Ela lavorava no comércio, sendo uma exímia comerciante. Tinha uma coisa grande que carregava consigo, que puxava... tinha... um tear. Entendia de fazer tapetes e roupas. Uma mulher bastante conceituada nesse meio, entretanto, por ser mulher, não adquiria sucesso. Os mercadores e compradores a evitavam.
Não se deu por vencida. Como vivia em uma comunidade judaica, procurou arrumar um alguém de confiança para vender seus produtos de artesanato e esta pessoa haveria de ser um homem. Em pouca sucessão de dias, persuadiu um judeu amigo seu, que por ela era enamorado e agradava-a em tudo. Não poderia perder a oportunidade de auxiliá-la nesse momento custoso em prol de sua aproximação dela. Com muito aferro, ele se empenhou, porém, foi um desastre, não tinha dom para o comércio. Deste tenho certeza da existência, pois foi ele que a acompanhou até o fim da vida. Devia ser da terra dela ou sei lá onde se conheceram.
O homem que andava e viveu com minha mãe e, posteriormente, comigo devia ter... era magro, possuía rosto fino, cabelos pretos e olhos grandes e esbugalhados. Ele não era negro. Nenhum de nós era negro, negro, negros não éramos. Quando trouxe minha mãe para o Brasil junto com ele, percebi que somente falava com ela dentro de casa, fora dela ele não falava, fingia-se de mudo. Nós não conversávamos mesmo, pois eu não entendia nada que dizia. Somente com ela comunicava-se. Quando ela rezava, fazia junto desse homem que comigo também conviveu. Era tanto judeu quanto ela. Ele tinha um nome engraçado. Ela chamava-o por um pequeno, não era grande... deixa ver se me lembro do nome dele... como chamava esse indivíduo... era rápido... Jônatas! Era como ela o chamava... isso mesmo, era Jônatas, ou era Jonas... ah! Era uma coisa dessas qualquer: Jônatas, Jonas ou Cônam... era qualquer desses. E ele atendia. Pelo semblante dele, não poderia ser igual a ela, pois havia muito mistério naquela vida. Agora, o que conversavam e rezavam? Sei lá!
Foi nesse meio tempo, em solo africano, que o senhor Costa e Judite se conheceram. Não me pergunte o tempo, porque este para mim está perdido. Mas o que um português faria numa cidade marroquina conhecida como o centro de pirataria muçulmana do Mediterrâneo? Comércio! O Costa era um grande comerciante liberal. Tinha empórios, vários. Adorava vender, encomendar e comprar. Levava todas as mercadorias compradas em vários pontos do mundo de navio para o porto da cidade espanhola Cádiz e de lá transportava para os empórios. Ele percebeu na judia todo um potencial na área comercial e não mediu esforços para adquiri-la em proveito mútuo. Convenceu-a a trabalhar para ele, levando junto o seu amigo de confiança. Então os dois viajaram com os Costas para Portugal.
Firmaram um pacto antes da viagem: a liberdade seria irrevogável e inquestionável, podendo fazer o que quisessem.
A sudanesa moraria com a família Costa, sendo a governanta, a administradora dos bens da casa, enquanto estivessem em Portugal. Quando viajassem a comércio, acompanharia a senhora Costa, sendo isso explicado ao povo, contudo, comerciaria afinco no empório com o senhor Costa. Em hipótese alguma, seria considerada sócia. Impossível!
Na casa dos Costas, haveria de ter um homem para tomar conta de todo um jardim, seria o jardineiro, uma pessoa pobre juntamente com sua esposa, supostamente Judite, trabalhando nessa casa. Desta forma, ela e o judeu encaixaram-se na família.
Agora, a questão que mais influenciou a aproximação e confiança dos Costas à Judite foi serem seguidores da mesma crença religiosa dela: eles eram igualmente judeus. O Costa tinha vários contatos internacionais, mas não somente devido às atividades do empório, e sim, porque tinha laços familiares e religiosos em lugares distintos. Acreditavam em Deus da maneira deles. Jeito este causador da morte de muitos portugueses. Vários! Não foram dois nem três. Muitos fugiram para o Brasil. Todos aqueles contra ao que a Igreja pregava eram queimados, não fazer o que exigia era o bastante. O senhor absoluto de tudo, a senhora absoluta de tudo era a Santa Igreja Católica, o que dizia era lei. Parece que detestava tudo que fosse progresso ou novidade que fugisse à sua compreensão e rédea.
A família continuava a viver em Portugal e para sociedade local havia se convertido ao catolicismo. Ficou conhecida como marrana, que é um termo pejorativo intitulando os cristão-novos suspeitos de prática às ocultas do judaísmo e esse era o caso dela. Costa receava muito a perseguição da inquisição atentada pelos fanáticos que queimavam as pessoas vivas em solução de não derramamento de sangue, obcecados pelos seus bens materiais adquiridos com o seu respectivo trabalho (deste, a burguesia justifica-se, dizendo que é o enobrecimento do homem). O mais incrível nisso tudo é que a inquisição já havia sido abolida em 1821, por decreto do Governo Revolucionário.
Aconteciam, em Lisboa, reuniões religiosas em casas particulares que serviam de sinagogas, porém, Costa procurava não participar com sua família, pois muitos dos seus amigos judeus desaparecerem e fugiram em prol do envolvimento. Ele não quis se envolver, preferindo não pôr a família em risco de vida.
A impiedosa inquisição foi encerrada, mas não significou liberdade de expressão religiosa, pois o catolicismo era a única religião oficialmente permitida aos portugueses. Por esses motivos, a família preferia omitir ser judia em Portugal e minha mãe reservava-se.
Meus pais, a família Costa (saberás logo o porquê de serem), viam a religião de outra maneira. Eu não! Era católico devoto de São Francisco de Assis.
Quando eles viajavam, o senhor Costa, meu pai, fechava e deixava a casa, passando tempos e tempos em outros lugares. Nas propriedades dele, empregados ficavam trabalhando. Ia a serviço de compras, fechamento de negócios, para depois recomprar e voltar com os produtos. Com ele e sua senhora, participavam da jornada o irmão dele, a acompanhante dela, e o acompanhante desta.
Desta forma aconteceria o meu prognóstico.

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