quinta-feira, 19 de julho de 2012

II – MEMÓRIAS DE VELUDO

Fazia um ano em que eu estivera na minha terra natal, nesta terra que cheguei recém-nascido, morei, cresci e brinquei, em que estudei, construí-me homem e parti quando meus laços afetivos com ela foram rasgados. Quis conquistar mais, esquecendo os parentes recentemente perdidos, após ir à África e a outros lugares da Europa. De lá partiram, junto a mim, minha mãe e seu acompanhante, um homem de confiança que com ela vivia há muito tempo. Este não era meu pai biológico, muito menos afetivamente, e, sim, indiferentemente eu o tinha. A terra que me acolhera após o primeiro ar rasgar os meus pulmões, fazendo-me chorar, foi Portugal, o ar lusitano foi-me o segundo. Estivera lá a trabalho e a rever meus negócios e propriedades. Na época pueril, achava esta terra grande, porém, quando voltei a ela, percebi que não era tão grande assim. Salta à vista, pois, quando criança e lá residia, não era obrigado a ser dono do meu nariz.
Quando retornei de Portugal e cheguei às minhas terras no Brasil, aliás, sendo mais esmiuçado, ao pisar o solo de Salvador, senti-me mais indisposto do que antes, durante a viajem de retorno na qual, a propósito de estar na proa do navio, acompanhava alienadamente, com o olhar, a esteira marítima idêntica a um cometa que, pincelando sua tinta no espaço celestial, deixa-o flamejado. Derreei-me na cadeira que lá pusera e cerrei as vistas, sentido-me enjoado conforme marinheiro de primeira viagem no mar que o cerceia... ou a quem sabe a mulher prenha. É uma hipótese para o meu mal-estar. Admito que não entendo bulhufas de navegação, mas não era a primeira vez e o mar não estava tão bravio, pelo contrário, jazia onírico. Instantes após, um súbito aperto no coração me desfaleceu no momento em que bebia um espirituoso aperitivo para abrir-me o apetite antes da refeição. Deve ter sido uma advertência antecipada do que saberia no futuro, de algo que poderia estar ocorrendo naquele exato instante, pois, como minha chegada era anunciada, no cais à minha espera, um empregado meu estava. Por esse eufêmico, tive a notícia do falecimento de minha verdadeira e doce mãe, que já possuíra bastante idade.
Ultimamente andava bastante pensativo, absorto em pensamentos afetivos. Pensava em muitas coisas, principalmente na família arrebatada pelo destino e em minha mãe. Por tudo que, por displicência e distância minha, não pude fazer por ela; por todos os abraços e palavras que não trocamos. Meu aclamador espírito trazia para dentro de mim, amargamente, a presença de minha mãe, restituindo-me alguns dos nossos momentos.
Peguei-me pensando nela por duas vezes, sem elucidar as que não quero ou as não notadas. Em uma, estava em plena missa na igreja de Santo Antônio da Barra quando o padre proferiu uns fonemas quaisquer... isto, pois foi apenas um som, não consegui codificar sua mensagem, pois meus ouvidos não colheram as palavras, mas acho que foi um “até amanhã”, depois percebi que já havia sido encerrada há horas. As beatas, desgraçadas, até cochicharam sobre uma possível loucura minha ou uma gafe, porém, sequer tinha me ruborizado (também, como poderia avermelhar meu rosto?). Na outra, eu estava em minha requintada casa, sentado numa acolchoada cadeira de ébano dentro do meu escritório com as pernas na mesa. Ninguém ali entrava além de mim e de minha mãe. Era um canto em que somente nós dois entrávamos... e mais ninguém. Nessa mesma ocasião, havia entrado em minha sala para traçar a continuidade de meus negócios sem a presença em vida de minha mãe e suas opiniões mais uma vez. Mesmo que não as colhesse; mãe é sempre mãe. Após trancar a porta, tirei a cartola e a capa de veludo, pondo-as na estaqueira. Trajava uma elegante roupa negra naquela tarde chuvosa. Junto aos documentos e livros na estante, tinha um bar com bebidas para eu relaxar e degustar lendo ou pensando em vão. Peguei um agradabilíssimo charuto e um deleitável vinho, por sinal, português... então, sentado de pernas para o ar, bebendo e fumando, surpreendi-me pensando nela novamente.
A tudo nessa vida eu agradeço à mulher que me deu à luz e tudo me ensinou, favoreceu e explicou, inclusive sobre minha alvoroçada e complicada procedência. Não sei o porquê, mas me sinto o culpado pela morte de minha mãe. Sentia-me como um eunuco que perde a sua referência de poder.




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