quinta-feira, 19 de julho de 2012

V – RETORNANDO A 1836


Costa, o homem que me criou, tinha um empório muito grande, enorme mesmo, em que vendia vários produtos. Vendia tudo que podes imaginar: panos, muitas fazendas e etc.. As especiarias que comprava na África e no Oriente faziam muito sucesso: muito cravo, canela, noz-moscada, gengibre, uma série de temperos, iguarias e essências. Ele comprava muitos vasos de procedência oriental, muitos vasos mesmo e, quando enfatizo isso, adoro girar o dedão de minha mão direita aberta na palma da esquerda também aberta, simbolizando... tu sabes o quê. Para isto foi a Cádiz, era um próspero comerciante. Tinha título de Dom, era um homem bem-sucedido nos negócios e bem integrado na sociedade portuguesa por tal posição social.
Meu pai (deste eu já tentei lembrar o nome... Frederico Antunes Costa... era este... não! Este era o irmão dele, mas já que lembrei desse, logo, logo lembrarei do nome de todos), por ser comerciante, viajava fazendo compras. Passava tempos longe, comercializando na companhia de seu irmão e Judite. Foi quando ela conheceu o homem que mudaria sua vida, semeando seu ventre, o mourisco chamado Juan de Córdoba pelos seus consanguíneos instalados na Espanha.
Retornando à corrida do ano de 1836, os irmãos Costa tiveram de voltar a Cádiz, lugar de desembarque de suas mercadorias, como era de costume, para receberem e verificarem as mercadorias, levá-las para outros empórios e comerciá-las. Judite já se encontrava no porto acompanhando minha mãe, a esposa do Costa, porque esta era doente e fraca. Ela sempre ia e vinha com a senhora Costa. Fechava as quintas, casas e viajava. Costa e Frederico, meu tio, chegaram a Cádiz e ficaram um respeitável período. Naquele tempo que estiveram no porto e que ela também esteve, tomando conta e vendo as mercadorias para eles, os destinos se cruzaram.
Obtiveram a informação da existência de ambos quando Juan fez tomada sua passagem sitiando a cidade espanhola juntamente com sua tribo nômade. Essa se instalara há poucos dias nessa localidade para reunir-se com seus descendentes que lá habitavam e ao comércio. Ele pertencia a uma família que partira de sua terra natal, Marrocos, para a Espanha juntar-se aos seus demais, depois de esta terra ter sido, há muito tempo, conquistada pelos árabes e, posteriormente, reconquistada pelos reis católicos, dando fim a 800 anos de poderio islâmico.
Era uma tribo nômade amante da música e da alegria que em suas atividades itinerantes vivia em cabanas, circulando, passeando e comercializando seus produtos de ferraria e de artesanatos, a maioria de cobre, porém, principalmente, seus cavalos de raça. Os homens dela eram opulentos criadores e barganhadores de ginetes. A família era de maioria marroquina de origem árabe, possuindo como comunidade comercializante os povos e tribos do oriente, os judeus, franceses, espanhóis e portugueses. À finalidade de comércio, esses marroquinos estavam no sudoeste da Espanha, entre gaditanos, na região da Andaluzia, onde encontraram facilidade para se estabelecerem. Mas muitos cautelosos com a inquisição católica espanhola.
Juan era o futuro chefe do clã e da aldeia, era o morgado, mas não sei se era xeque. Minha mãe descrevia-o, dizendo que ele não era um branco-branco, mas que sim bem tostado pelo sol africano, possuindo olhos verdes e quase dois metros de altura. Continha sua tríade de honra conceituada pela tribo: era corajoso, leal e generoso. Ele tinha amor incrível por cavalos. Carregava consigo um lobo branco, era o seu cão, mas esse era um lobo mesmo. Certamente, só sei que Plutão era o meu, sem raça. Um amigo leal que não me largou quando jazendo estava... não me deixou no meu último momento.
Eles haviam se conhecido por coincidência visual, em certa ocasião, num dia qualquer, em que ela saíra ao empório numa alcaçaria. Desta forma, minha mãe e Juan se cruzaram no comércio. Para ele, ali foi o suficiente, tornou-se insano e atordoado, querendo, como criança quando berra e chora por alguma coisa, imediatamente saber quem era ela, mandando seguirem-na. A partir de então, começaria o enlace. Para mim, minha mãe conheceu mesmo o marroquino quando se deitou com ele, quarenta e três anos antes do dia doze de junho de mil oitocentos e oitenta e três. Eu não me lembro agora se ela me contou isso um dia... antes que te ou me perguntes, leitor (espero lembrar-me durante a nossa conversa). Consequentemente, minha mãe que era judia e negra do Sudão, por ela Juan, meu pai, apaixonou-se e desta frascarice eu surgi.
Entretanto, para a tradição tribal, esse mouro haveria de um dia desposar uma mulher da aldeia do seu clã, conforme sua tradição e cultura. Haveria de manter a linhagem. Ele sabia da rigorosidade disso; era o seu predestinado destino, desde o ventre de sua mãe, assim deve ser com o primogênito. Porém, procurava esquecer, enfim, estava inebriado. Judite, aos seus olhos, mitologicamente era a figura da Santa Sara, a serva sudanesa, cujo mistério está relacionado às “virgens negras” e que também está ligado à Kalí, a deusa negra da mitologia hindu.

IV - A HISTÓRIA DE ANTES DE MIM

        Corria o ano santo de 1836, quando o prenúncio de minha vinda para este mundo teu aconteceu. Nesta época, minha mãe servia há um bom período de tempo a uma família tradicional. Era governanta de uma casa portuguesa. No momento, eu não me lembro, para este capítulo, a que família servia, mas era de Portugal – espero que adiante eu me recorde... não! Mil perdões! Tantos são os fatos não lembrados que quase cometo um grandioso equívoco. É óbvio que sei o nome da gente a quem ela trabalhava: família Costa. O que não recordo agora são os nomes dos componentes. Novamente, perdão.
Judite era uma pessoa sábia com nível cultural acima da média. Sabia ler, escrever, falar várias línguas e não somente uma: árabe, francês, espanhol, português e também o idioma dela, que eu quero me lembrar, mas como chamava o idioma peculiar a sua região... era aquele que os judeus semitas falavam, como se chama a língua dos judeus? Não era o iídiche. Sim, minha mãe falava aramaico. Com todos esses requisitos linguísticos, era governanta e intérprete. Uma grande negociadora, seu principal papel destacável nessa família. Era uma criatura de alta confiança, que, como disse inicialmente, ela servia há alguns anos.
Ela era sudanesa, contudo, não foi em solo materno que conhecera essa família. Foi num outro país negro, no Marrocos. Ela encontrava-se em Rabat, em um tempo bastante anterior ao do início do capítulo.
Minha genitora era uma mulher madura, livre e desimpedida, e seja dito de passagem que ela nunca se casou mesmo havendo pretendentes. Ela lavorava no comércio, sendo uma exímia comerciante. Tinha uma coisa grande que carregava consigo, que puxava... tinha... um tear. Entendia de fazer tapetes e roupas. Uma mulher bastante conceituada nesse meio, entretanto, por ser mulher, não adquiria sucesso. Os mercadores e compradores a evitavam.
Não se deu por vencida. Como vivia em uma comunidade judaica, procurou arrumar um alguém de confiança para vender seus produtos de artesanato e esta pessoa haveria de ser um homem. Em pouca sucessão de dias, persuadiu um judeu amigo seu, que por ela era enamorado e agradava-a em tudo. Não poderia perder a oportunidade de auxiliá-la nesse momento custoso em prol de sua aproximação dela. Com muito aferro, ele se empenhou, porém, foi um desastre, não tinha dom para o comércio. Deste tenho certeza da existência, pois foi ele que a acompanhou até o fim da vida. Devia ser da terra dela ou sei lá onde se conheceram.
O homem que andava e viveu com minha mãe e, posteriormente, comigo devia ter... era magro, possuía rosto fino, cabelos pretos e olhos grandes e esbugalhados. Ele não era negro. Nenhum de nós era negro, negro, negros não éramos. Quando trouxe minha mãe para o Brasil junto com ele, percebi que somente falava com ela dentro de casa, fora dela ele não falava, fingia-se de mudo. Nós não conversávamos mesmo, pois eu não entendia nada que dizia. Somente com ela comunicava-se. Quando ela rezava, fazia junto desse homem que comigo também conviveu. Era tanto judeu quanto ela. Ele tinha um nome engraçado. Ela chamava-o por um pequeno, não era grande... deixa ver se me lembro do nome dele... como chamava esse indivíduo... era rápido... Jônatas! Era como ela o chamava... isso mesmo, era Jônatas, ou era Jonas... ah! Era uma coisa dessas qualquer: Jônatas, Jonas ou Cônam... era qualquer desses. E ele atendia. Pelo semblante dele, não poderia ser igual a ela, pois havia muito mistério naquela vida. Agora, o que conversavam e rezavam? Sei lá!
Foi nesse meio tempo, em solo africano, que o senhor Costa e Judite se conheceram. Não me pergunte o tempo, porque este para mim está perdido. Mas o que um português faria numa cidade marroquina conhecida como o centro de pirataria muçulmana do Mediterrâneo? Comércio! O Costa era um grande comerciante liberal. Tinha empórios, vários. Adorava vender, encomendar e comprar. Levava todas as mercadorias compradas em vários pontos do mundo de navio para o porto da cidade espanhola Cádiz e de lá transportava para os empórios. Ele percebeu na judia todo um potencial na área comercial e não mediu esforços para adquiri-la em proveito mútuo. Convenceu-a a trabalhar para ele, levando junto o seu amigo de confiança. Então os dois viajaram com os Costas para Portugal.
Firmaram um pacto antes da viagem: a liberdade seria irrevogável e inquestionável, podendo fazer o que quisessem.
A sudanesa moraria com a família Costa, sendo a governanta, a administradora dos bens da casa, enquanto estivessem em Portugal. Quando viajassem a comércio, acompanharia a senhora Costa, sendo isso explicado ao povo, contudo, comerciaria afinco no empório com o senhor Costa. Em hipótese alguma, seria considerada sócia. Impossível!
Na casa dos Costas, haveria de ter um homem para tomar conta de todo um jardim, seria o jardineiro, uma pessoa pobre juntamente com sua esposa, supostamente Judite, trabalhando nessa casa. Desta forma, ela e o judeu encaixaram-se na família.
Agora, a questão que mais influenciou a aproximação e confiança dos Costas à Judite foi serem seguidores da mesma crença religiosa dela: eles eram igualmente judeus. O Costa tinha vários contatos internacionais, mas não somente devido às atividades do empório, e sim, porque tinha laços familiares e religiosos em lugares distintos. Acreditavam em Deus da maneira deles. Jeito este causador da morte de muitos portugueses. Vários! Não foram dois nem três. Muitos fugiram para o Brasil. Todos aqueles contra ao que a Igreja pregava eram queimados, não fazer o que exigia era o bastante. O senhor absoluto de tudo, a senhora absoluta de tudo era a Santa Igreja Católica, o que dizia era lei. Parece que detestava tudo que fosse progresso ou novidade que fugisse à sua compreensão e rédea.
A família continuava a viver em Portugal e para sociedade local havia se convertido ao catolicismo. Ficou conhecida como marrana, que é um termo pejorativo intitulando os cristão-novos suspeitos de prática às ocultas do judaísmo e esse era o caso dela. Costa receava muito a perseguição da inquisição atentada pelos fanáticos que queimavam as pessoas vivas em solução de não derramamento de sangue, obcecados pelos seus bens materiais adquiridos com o seu respectivo trabalho (deste, a burguesia justifica-se, dizendo que é o enobrecimento do homem). O mais incrível nisso tudo é que a inquisição já havia sido abolida em 1821, por decreto do Governo Revolucionário.
Aconteciam, em Lisboa, reuniões religiosas em casas particulares que serviam de sinagogas, porém, Costa procurava não participar com sua família, pois muitos dos seus amigos judeus desaparecerem e fugiram em prol do envolvimento. Ele não quis se envolver, preferindo não pôr a família em risco de vida.
A impiedosa inquisição foi encerrada, mas não significou liberdade de expressão religiosa, pois o catolicismo era a única religião oficialmente permitida aos portugueses. Por esses motivos, a família preferia omitir ser judia em Portugal e minha mãe reservava-se.
Meus pais, a família Costa (saberás logo o porquê de serem), viam a religião de outra maneira. Eu não! Era católico devoto de São Francisco de Assis.
Quando eles viajavam, o senhor Costa, meu pai, fechava e deixava a casa, passando tempos e tempos em outros lugares. Nas propriedades dele, empregados ficavam trabalhando. Ia a serviço de compras, fechamento de negócios, para depois recomprar e voltar com os produtos. Com ele e sua senhora, participavam da jornada o irmão dele, a acompanhante dela, e o acompanhante desta.
Desta forma aconteceria o meu prognóstico.

III – MINHA QUERIDA E REVERENCIADA MÃE

Minha mãe era uma mulher exuberante e exótica. Tinha os cabelos escorridos e negros como o ébano. Seus penetrantes olhos eram semiesbugalhados com o fundo deles azul, aparentando duas bolas celestes que eram demarcadas ao redor com cores escuras, fazendo-a parecer com personagens egípcias, idênticas a essas que vemos amostras quando estudamos, mesmo que simploriamente, civilizações antigas. Contudo, suas expressões faciais eram leves e convidativas à admiração de homens, mulheres e crianças. Qualquer mulher que ficasse ao lado dela se sentiria ofuscada por seu brilho e magia interior. A pele de minha mãe parecia... não, era negra... negra da cor de cacau. Leitor, sabes o que é negro-cor-de-cacau?
Ela chamava-se Judite, era de origem semita, era uma judia. Era Judite da tribo tal, porque eu não sei de que tribo era descendente. Só sei que era uma judia e isto escondeu o tempo todo, enquanto vivia em Portugal e no Brasil, pois quando estava naquele país e veio para este, se fosse revelado isso, seria perseguida e presa ou queimada. Minha mãe é natural do Sudão. Nasceu neste lugar, era uma negra do Sudão, mas não era negra-negra. E já me iria esquecendo, ela não era uma escrava.
Nunca ouviste dizer que existia judeu negro descendente de semita no Sudão, leitor? Pois ela é de lá.
Minha mãe vivia enrolada em panos de fortes e bonitas matizes, trazendo o corpo amarrado e delineado. Tinha nádegas sutis e seios médios. Dava para ver suas costelas. Era esguia, pernas compridas, lábios carnudos. Usava um pano enrolado na cabeça, entretanto, não era um turbante, pois ele era delicado e fino cobrindo e escondendo seus cabelos e orelhas. Esses vários panos, com os quais amarrava e prendia ao corpo, ficavam soltos e caídos nela de tal forma que, ao andar subindo degraus de uma casa, tinha-se a oportunidade de ver parte de sua roupa andando e subindo os degraus junto a ela. Fazia questão de usar aqueles trajes que flutuavam ao vento com o seu mavioso andar, dando a impressão de não estar com os pés no chão. À minha verossimilhança, aquelas roupas eram engraçadas, porém, encantavam-me completamente. Um impagável espetáculo feminino! Infelizmente, quando para esta antiga colônia veio viver, não usou mais aquelas alegres roupas. Ela vivia escondida. Quando estava em Portugal, tive poucas chances de vê-la assim livremente nas ruas a desfile, pois aí se retinha um pouco. Seria um suicídio vestir-se de sua forma tradicional. Era uma mulher comedida e austera, tendo controle sobre tudo, era sisuda e sóbria.
Parece que, como ela me relatava, bom mesmo para desfrutar de sua cultural beleza feminina era quando viajava a fim de comércio pelo mundo a fora. Passava horas olhando para o leste. Certa ocasião me disse que tinha saudades.
Leitor, depois dessas descritas características, será que não sonharias com uma mulher igual a ela, digo parecida, pois exijo respeito com minha mãe! Descontrações à parte, pelo lado dela, afeto, carinho e dedicação nunca me faltaram. Excelente, exemplar e presente mãe, mesmo com todas as dificuldades expressas pela dura vida. Não pelo fato de sê-la minha respectiva mãe, mas sou até limitado no que diz à beleza física e ao amor dedicado a mim, seu único filho, que não foi tão recíproco com ela, tendo como afastamento as consequências do inevitável e incomensurável destino.

II – MEMÓRIAS DE VELUDO

Fazia um ano em que eu estivera na minha terra natal, nesta terra que cheguei recém-nascido, morei, cresci e brinquei, em que estudei, construí-me homem e parti quando meus laços afetivos com ela foram rasgados. Quis conquistar mais, esquecendo os parentes recentemente perdidos, após ir à África e a outros lugares da Europa. De lá partiram, junto a mim, minha mãe e seu acompanhante, um homem de confiança que com ela vivia há muito tempo. Este não era meu pai biológico, muito menos afetivamente, e, sim, indiferentemente eu o tinha. A terra que me acolhera após o primeiro ar rasgar os meus pulmões, fazendo-me chorar, foi Portugal, o ar lusitano foi-me o segundo. Estivera lá a trabalho e a rever meus negócios e propriedades. Na época pueril, achava esta terra grande, porém, quando voltei a ela, percebi que não era tão grande assim. Salta à vista, pois, quando criança e lá residia, não era obrigado a ser dono do meu nariz.
Quando retornei de Portugal e cheguei às minhas terras no Brasil, aliás, sendo mais esmiuçado, ao pisar o solo de Salvador, senti-me mais indisposto do que antes, durante a viajem de retorno na qual, a propósito de estar na proa do navio, acompanhava alienadamente, com o olhar, a esteira marítima idêntica a um cometa que, pincelando sua tinta no espaço celestial, deixa-o flamejado. Derreei-me na cadeira que lá pusera e cerrei as vistas, sentido-me enjoado conforme marinheiro de primeira viagem no mar que o cerceia... ou a quem sabe a mulher prenha. É uma hipótese para o meu mal-estar. Admito que não entendo bulhufas de navegação, mas não era a primeira vez e o mar não estava tão bravio, pelo contrário, jazia onírico. Instantes após, um súbito aperto no coração me desfaleceu no momento em que bebia um espirituoso aperitivo para abrir-me o apetite antes da refeição. Deve ter sido uma advertência antecipada do que saberia no futuro, de algo que poderia estar ocorrendo naquele exato instante, pois, como minha chegada era anunciada, no cais à minha espera, um empregado meu estava. Por esse eufêmico, tive a notícia do falecimento de minha verdadeira e doce mãe, que já possuíra bastante idade.
Ultimamente andava bastante pensativo, absorto em pensamentos afetivos. Pensava em muitas coisas, principalmente na família arrebatada pelo destino e em minha mãe. Por tudo que, por displicência e distância minha, não pude fazer por ela; por todos os abraços e palavras que não trocamos. Meu aclamador espírito trazia para dentro de mim, amargamente, a presença de minha mãe, restituindo-me alguns dos nossos momentos.
Peguei-me pensando nela por duas vezes, sem elucidar as que não quero ou as não notadas. Em uma, estava em plena missa na igreja de Santo Antônio da Barra quando o padre proferiu uns fonemas quaisquer... isto, pois foi apenas um som, não consegui codificar sua mensagem, pois meus ouvidos não colheram as palavras, mas acho que foi um “até amanhã”, depois percebi que já havia sido encerrada há horas. As beatas, desgraçadas, até cochicharam sobre uma possível loucura minha ou uma gafe, porém, sequer tinha me ruborizado (também, como poderia avermelhar meu rosto?). Na outra, eu estava em minha requintada casa, sentado numa acolchoada cadeira de ébano dentro do meu escritório com as pernas na mesa. Ninguém ali entrava além de mim e de minha mãe. Era um canto em que somente nós dois entrávamos... e mais ninguém. Nessa mesma ocasião, havia entrado em minha sala para traçar a continuidade de meus negócios sem a presença em vida de minha mãe e suas opiniões mais uma vez. Mesmo que não as colhesse; mãe é sempre mãe. Após trancar a porta, tirei a cartola e a capa de veludo, pondo-as na estaqueira. Trajava uma elegante roupa negra naquela tarde chuvosa. Junto aos documentos e livros na estante, tinha um bar com bebidas para eu relaxar e degustar lendo ou pensando em vão. Peguei um agradabilíssimo charuto e um deleitável vinho, por sinal, português... então, sentado de pernas para o ar, bebendo e fumando, surpreendi-me pensando nela novamente.
A tudo nessa vida eu agradeço à mulher que me deu à luz e tudo me ensinou, favoreceu e explicou, inclusive sobre minha alvoroçada e complicada procedência. Não sei o porquê, mas me sinto o culpado pela morte de minha mãe. Sentia-me como um eunuco que perde a sua referência de poder.




I – PRELÚDIO DO PÓS-FIM

         ... sou ruptura... continuidade... fragmentos... transcendental!
Lê e te encanta, ó leitor, filho de Deus e da mãe Terra!
Esta história marcada é de uma vida, não da tua, mas sim da minha vida criada pela morte. Faz-me recordar personagem de uma das obras de um amigo suicida meu, que diz: Amou, perdeu-se e morreu amando. Ficção essa li com prazer; fim ao adendo. A minha vida posso contá-la, contudo, não posso convidar-te a vivê-la. Por conseguinte, para um diálogo comigo, poderia eu inventá-lo, mas não o quero. Conversação, mesmo fazendo parte dela, é difícil sua reprodução. Nada melhor do que, sincronamente, eu e tu.
Aqui, neste momento, após desespero, loucura e agonia, mais do que a mim foi destinado ao nascer para o dies irae, jazendo ao solo, sepulcro o meu viver. Despojado de minha armadura não posso ser. O meu manto, minha capa de veludo, meu cobertor, minha pele, tem que me aquecer.
Perto do meu corpo encontra-se um amigo, um verdadeiro e fidedigno companheiro que me acompanha e protege há tempos, está a lamber-me a face e minha sinistra, é o meu cão, não um cão de raça, mas sem pedigree nem nada, é o meu doce preto Plutão. Ele não me deixou e, chegado a ele, somente os negros escravos, que a mim são caros e que a reciprocidade havia, aproximaram de meu invólucro mortal corpo e mais ninguém, pois as outras pessoas, que queriam meu bem, a meus bens sublimados se edificaram. E sendo pela religiosidade africana deles, conhecimento passado de geração a geração sobre o além, que, em alguns dias depois de minha morte matada, retornei ao plano concreto, no qual basta imaginar para que se exista, manifestando-me sobrenaturalmente. É de bastante atenção requerida por mim a ti sobre essa volta. Eu voltei, não ressuscitei, meu corpo apodrece na terra.
É... ninguém me chorou, salvo apenas por Plutão e pelos negros. Verdade, por estes foi-me obtido o galardão do choro, prêmio destinado a quem transcende a matéria que a princípio é sua.
Esta obra, minhas memórias, articulei-a no além (mas não conforme um contemporâneo meu que evitou contar o processo extraordinário empregado na composição de suas respectivas memórias trabalhadas lá no outro mundo, pois sua estória é ficcional). Entendas além como quiseres. Juntamente com a ajuda de alguns personagens, que fazem parte dela, transmigrei essas ideias sobre o tempo para cá, neste mundo, através de um grandioso mistério, munido de papel e pena, pudesse fazê-la ser escrita, inefavelmente, tentando expor minha cabeça cosmopolita. Agora, eu não sei se para ti é uma biografia ou autobiografia, pois sou o contador da história, porém, se não tenho mais corpo, como a faço surgir. Rio e imagino a expressão daqueles que destrinçam as obras, tolos! Leitor, entende como quiseres, pois aqui há a liberdade. Eu digo que a Terra é redonda como uma laranja e azul como um pequi e deves entender.
Meu leitor, não quero que te cegues para mim. Não deixes, assim, de me salvares e me conheceres, pois, como no princípio, sobre o qual dizem que só havia a palavra, hoje não possuo mais corpo para ser reconhecido. Somente há as minhas palavras representadas por meio de sinais, que unidas ajudam-me a contar um pouco da minha vida, de minha trajetória antes, durante e depois de ter ocupado um corpo, o meu corpo.
Tu, leitor, podes me dizer que não me reconheces, mas isto é óbvio, tão transparente e claro como a água que na mata sai das pedras. Somos de épocas e lugares diferentes... mas, se és um desenganado, iludido, inconformado e frustrado com a maioria de teus próximos (mesmo que externamente as pessoas não percebam), reconhecer-me-ás em ti, pois as ações não mudam, somente mudam de praticante, desde o princípio, desde a parola.
Deixa-me que a ti apresento-me, eu sou da família Costa, meu nome é João Paulo da Costa, um bacharel formado no velho mundo ao teu dispor.
A vida é tão curta, leitor, que agora mesmo, diante do meu gélido corpo que abandonei como disse, vejo passar todas as passagens de minha vida, rapidamente, que, se eu piscar os olhos... ela já terminou, passou, acabou. Tu não vês, leitor? Ou desejas cegar-te à minha história fechando este livro, seria mais um assassínio. Se me matas, sou o porquê deste papel de obra, deste mausoléu: A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado lá. Além de perder meu corpo, perco meu espírito! Mas se não me mataste a mim também e continuas a comunicar-te comigo, ajudar-te-ei a ver todos os fragmentos que vejo, logo evoluirei. Vejo muito, até as passagens de antes do meu nascimento, coisas que sei, pois minha querida e reverenciada mãe me contou. Percebo que há uma grande confusão em minha explicação, não é fácil compreender, visto que, se, neste exato momento, acabo de abandonar o meu corpo, leitor, como a ti meu corpo não mais existe? Infelizmente não posso a ti esclarecer as fronteiras que não existem entre o aqui e o lá, ou o ontem e o agora. A nós, transcendentes, o tempo não existe, o que realmente existe é a vontade daquele que responsabilizamos por nossa eclosão, aliás, eu nem sei quem é, no entanto, não desejo divinizar o assunto.
Muitas das coisas que ocorreram em minha vida eu não tenho como trazer à memória, pois, se vires bem, nem tu és capaz de recordar de tua infância, quem dirá de mim que deixei, há muitos anos, esse plano no qual estás. Não possuo sangue nem sistema nervoso, porém, perceberás que tenho síncopes, isto é, minha consciência falha.
Enfim, amigo, presta atenção e vê se me reconheces ou conheces. São memórias de veludo. Então, psss... silêncio...