sexta-feira, 16 de novembro de 2012

XVIII - OS PEDROS E OS NOBRES



Em 1883, no dia doze de junho, meu corpo, esse jaz no chão, cinco anos antes da lei áurea. Eu não tive a felicidade de presenciar a libertação dos negros. Não tive esse prazer; faltaram-me cabeça e poucos anos para isso. Mas na minha ocasião movimentos abolicionistas já existiam e quem era simpatizante praticava às ocultas. Tudo às escondidas, porque, desde que D. Pedro I, esse imoral e indecente, que no dia sete de setembro de mil novecentos e vinte e dois estava bêbado (para mim não é mais problema asseverar isto, somente não sei se acreditarás), assumiu o poder, vivemos uma grandiosa mentira. Esse homem nunca separou nada de ninguém. Era um alcoólatra, um covarde. A história do Brasil não é contada verdadeiramente. É difícil aceitares isso? Ele nada fez. Quem planejou tudo foi a mulher dele. Essa história de que se levantou e gritou ficou sendo a conveniente, pois era isso que a sociedade (compreendas que essa palavra aqui contraria o seu sentido totalizante) desejava que acontecesse. Pouco tempo depois, não resistiu a toda pressão que o povo punha nele, desde antes. Quando o chamaram para retornar a Portugal, comprometeu-se, diante do povo, que permaneceria no país, mas só sabia participar de badernas e de doações de grandes lotes de terra, para mulheres, mulheres e mais mulheres com quem tinha filhos, com quem se deitava, com quem trocava doenças. Provavelmente, morreu cheio de sífilis!
Por fim, foi obrigado a partir, a ir embora e deixar aqui o seu filho. Haveria de deixar um regente tomando conta. Esse homem sim, D. Pedro II mereceu tudo o que lhe foi direito; justo, honesto, amante das artes e das letras e meu amigo. Procurou elevar tudo isso a uma cultura muito grande. Mesmo assim, quando se pensava em libertar os escravos, já havia facções que ansiavam derrubá-lo. Eram aqueles conservadores que faziam parte do militarismo, que comandavam as forças armadas que havia naquela época. Embora Caxias tenha sido assistido para a manutenção da integridade do império, ele era um racista e destruidor de quilombos. E também não podemos esquecer dos republicanos.
No tempo do Império, no tempo de Pedro II, muitas vezes fui ao do Rio de Janeiro. Por inúmeras ocasiões fui à terra de Pedro, Petrópolis – capital do Império -, visitá-lo no seu Palácio de Verão. Nessa época atual tua, não acredito que se encontre algo com o nome de João Paulo da Costa, pois na minha época de vida, quando se morria em desgraça, o nome de qualquer um era varrido de tudo e, como não tive herdeiros, meus bens todos foram tomados, tudo, pois, se alguma mulher pariu algum filho meu, eu não tomei conhecimento.
Em vida, certamente, não poderia escrever tais asseverações, pois baseada em que história é essa contada? Minha vida. Como se fala da ficção de um homem que mentiu, não separou nada de ninguém? Essa ficção tem endereço exato.
Presta atenção numa coisa muito séria: muitas pessoas naquela época escreveram e seus livros foram queimados, suas casas destruídas, suas famílias e corpos foram salgados. Não sei como são os atos de repreensão hoje. Contudo, não possuo mais corpo para ser torturado! Apenas conto parte de uma história, da época em que vivi. Acredito que, se desejas alumiar meus caminhos, não precisarias saber de tantos acontecimentos, não precisaria falar de uma independência de mentira, no entanto, que maravilhoso! Quem sabe assim, depois desse relato, eu vá direto para o céu!
Talvez algum dia alguém que estude a história, que tenha acesso a todo um acervo de documentos, que não tenham sido danificados ou alterados ainda, como já disse anteriormente, consiga fazer esse povo ver que, se houve realmente um afastamento da corte real de Portugal que aqui estava, foi graças à mulher de Pedro I e não a ele. Era um beberrão, um fanfarrão, imoral, indecente. Sua corte era podre e imunda! Eu não conheci o pai de D. Pedro I, mas se sabe que, segundo a falácia na corte, era um porco.
Essas coisas, que hoje se ouve falar dos salões, nobres com dentes bonitos, por exemplo, são mentiras. Onde viste isto? A maioria tinha seus dentes podres, limpavam a boca no gibão, tomavam banho de ceroulas, quando tomavam. Em contrapartida, os pederastas e as mulheres de baixa meretriz, os marginalizados, eram muito mais limpos. Eles não se deitavam com os nobres, sem que esses não tomassem banho. Eles eram lavados. As glandes, o pênis tinha de ser limpo porque fedia a podre. Isso tudo é a história que desejas saber? Tens certeza?
O rumo da história é como um rumo de rio: se mudar, seca. O passado não pode ser destruído. O presente vive no passado almejando o futuro. Águas passadas não movem o mesmo moinho. É só represá-las que moverão outro. Tiradentes, o mártir com cara de Jesus? Esse grande maçom não morreu enforcado. Morreu foi um pobre mendigo, pois a Maçonaria não deixaria. A história de Maria Quitéria acabou quando pegou seu marido com as nádegas voltadas para outro homem. Francisco de Assis, que dançou nu antes de se tornar um homem santo, morreu de sífilis. As pústulas não eram as marcas de Cristo, pois a doença já estava escondida nele. E assim vai.

XVII - BAHIA DE TODOS OS SANTOS



Santos? Santos sim. Desde criança, embora meus pais judeus, tornei um católico fervoroso. Assim é o povo português. Não haveria lugar melhor para ir. Segundo Avelar, lá eu poderia melhorar o contrabando, pois com meu dinheiro poderia facilitá-lo pelo porto. Portanto, fui sozinho a Salvador. Lá adquiri uma quinta maravilhosa em Nazaré das Farinhas, na antiga rua da lama, chamava-se assim naquela época em que ali morei. Comprei uma outra casa que ficava em Salvador mesmo. Era numa ladeira chamada Nazaré também. Eu tinha o que não sei como é chamado hoje, um local no qual recebia e atendia às pessoas. Afinal de contas, era um bacharel. Ali trabalhava sério, todavia quero deixar claro que sempre fui uma pessoa muito séria. Meu trabalho sempre foi sério, pois, então, achas que contrabando não é uma coisa seria? Se não fizer direito, não dará certo. Tem de ser uma coisa séria. Apesar de ter me formado, fiz mais contrabando quando cheguei ao Brasil do que exercer minha própria área de estudo.
Um mês depois de instalado, trouxe minha mãe, Jônatas, Avelar e sua esposa, que não se desfizeram das propriedades nas Gerais. Dona Hermengarda ficou responsável pelo empório. Vendi a propriedade de Minas, onde permaneci por um ano.
Estabelecendo-me na Bahia, fui e voltei várias vezes porque precisava acertar todo o meu contrabando que vinha de Portugal, da França, da Espanha e de tudo quanto era lugar. O que contrabandeava? Tapetes, roupas, fazendas, tecidos, os mais finos possíveis; bebidas, armas, artigos antigos e muito o que se possa imaginar. Tudo isso chegava por trás do cais, por volta da Barra. Descarregava e passava por trás da Igreja de Santo Antônio da Barra. Lá ficavam as coisas guardadas. Agora, algo que nunca fiz foi tráfico de negros. De resto, contrabandeei tudo o que fosse necessário. E não foi muito... assim... certinho. Não penses que tudo foi só contrabando. Também não foi tanto assim. Desviava algumas coisas. Apresentava aquilo que estava em cima, porém o que estava nos porões ninguém sabia de nada. No Brasil, eu não teria a chance de ser alguém. Cheguei com nome, maior de idade, mas desconhecido. Para continuar sendo alguém, tive de roubar e traficar. Assim sobrevivi: traficando, defendendo o culpado e encarcerando o inocente. A esse último caso, não há nada mais fácil; o inocente, pobre, é culpado à vida inteira, pois só em nascer nessa condição já é um crime. Quando o filho de um homem rico assassinava alguém por qualquer que fosse a razão, eu arrumava uma pessoa pobre para que assumisse a responsabilidade do ato e fosse presa. Tempo depois, dava um jeito para que ela fosse libertada ou que fugisse e mandava–a para um lugar distante com outro nome.
Não sei para quem ficaram os meus bens. Foi assim que fiquei rico, ou seja, mais rico. Num período de cinco anos residindo na Bahia, já era um homem respeitado pelo comerciante que era, pelo bacharel requisitado, enfim, pelo poder financeiro que já ostentava perante a sociedade.
Tudo o que fiz, tudo o que deixei de declarar, não sei como posso revelar isso hoje, mas todo o meu contrabando era guardado dentro da igreja de Santo Antônio da Barra. Embaixo, nos porões, ali guardava tudo. Ninguém nunca procuraria nesse lugar. Nunca! Eu tinha acesso por ali, pela passagem feita por negros eu passava. Não havia lugar melhor, mesmo porque já falei que sempre fui católico fervoríssimo. Minhas contribuições à Igreja sempre foram generosíssimas. E aqui sentado a ti falo, onde? Como? Não vês? Nada disso importa! Põe vinho em minha taça e me sirve. Meu charuto apagou; ofereçe-me outro.
Lembra-te de quantos dias depois retornei como espírito? Lembra-te do que usaram para me trazer de volta? Minha capa de veludo, isso mesmo. Naquela época sim, sabia-se montar um espírito de morto... ou como diziam os iorubanos, egum. Hoje não, acabou. Infelizmente, nesse momento, não me lembro do nome de quem me montou, não sei. Mas era alguém conhecido por mim, pois eu tinha os negros muito bem tratados. Eu nunca velei a ninguém que fui a favor da libertação dos negros. Jamais seria contra! Não te esqueça que minha mãe era uma negra da cor do cacau.
Desde sempre, caro filho e leitor, quando se fala em negro, todo mundo imagina uma porção de cabelo duro, canelas finas, escravo, fome, um arco, flechas, pulando de árvore em árvore igual a macacos, mas por quê? Todos são condicionados pelo Ocidente. Sê hipócrita, não serás o primeiro nem o último, dize: “eu não sei!” Essa é a concepção quando se fala de negro. Engraçado é o antagonismo. Quando se fala de branco, imaginam-se altos palácios, castelos, pureza, conhecimento e sabedoria.
A pele de minha mãe era como cacau, uma mulher lindíssima, agora, como ela conseguiu, com a pele dessa cor, ter cabelos escorridos e azulados olhos semiesbugalhados, não me perguntes? Os meus olhos eram verdes como os amendoados de meu pai, segundo Judite.
Enfim...
A tudo agradecia aos santos pela minha assunção. Tanto que todo domingo ia, juntamente com minha mãe e Jônatas e os Avelar, à Igreja rezar. Eles não eram convertidos ao catolicismo. Iam à Igreja por mim e pela sociedade. Não podiam dizer que eram judeus, nem que eram a favor. O que faziam religiosamente era escondido. Só tinham um Deus. Agora, não sei se marroquinos, semitas, caldeus, sicranos, de onde vieram, tinham um só Deus. Só sei que fomos parar na Bahia, onde tudo em quanto lugar tinha Deus lá dentro. Lá aprendi amorosamente a conhecer o deus Ogum, a deusa Iemanjá, a deusa Oxum, o deus Xangô. Para os negros de lá, toda a natureza é Deus, pois ela o representa. Imagina a confusão que nossas cabeças viraram. Ô terra de todos os santos! Assim foi construída a concepção de minha saudosa Bahia por esse meu povo tão sofrido. 

XVI -À NOVA FRANÇA!



Eu, minha mãe e Jônatas partimos em boa hora de Portugal, em 1866. Antes de irmos para Salvador, para residirmos, fomos para Minas Gerais. Nesse lugar, comecei a aprender o melhor de tudo: o contrabando. Dali começou tudo. Lá conheci um homem chamado Lourenço... Lourenço de Avelar, isso! Tinha, por esposa, uma mulher com o nome muito desgraçado que era... Hermengarda, ô nome desgraçado esse! Hermengarda... era esse mesmo o nome dela. Nós na casa dos Avelar ficamos hospedados. Mas logo depois compramos uma casa par morarmos.
Lourenço tinha é... é, como se diz... ele tinha um empório também, mas vendia comida: farinha, fubá; tinha um empório no qual vendia comida.
Ele era muito amigo de Judite e Jônatas. Veio para o Brasil de Portugal, justamente, fugido. Era da mesma crença deles. Foi uma confusão desgraçada e ele estava nas Gerais. Desde a época das Capitanias, aqui no Brasil, tempo das Minas Gerais, ninguém podia ser judeu. Ainda queimavam abertamente muita gente por causa de religião. A burguesia inventa a história de acordo com seus interesses. É muito fácil: presume-se uma data e joga-se a informação... pronto e acabado! Quem questionará? Como? Vê esta minha história, ocorre o mesmo. É um fato real ou ficcional. Não esqueças de que o nome Costa é muito respeitado, tem tradição.
Retornando...
Quem conhecia era Judite, porque ele já havia vindo fugido de Portugal para cá. Nós viemos para cá com tudo acertado. Só não aconteceu nada de errado por causa do meu nome, Costa. Ninguém me questionou, pois não tinham a cara de meu pai para comparar. Ele era respeitado, mas ninguém conhecia seu rosto. O que importa? Eu tinha dinheiro. E também não era negro-negro. A mistura de uma pessoa de pele escura com uma de pele clara dá um negro? Nunca!

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

XV - ADEUS, PORTUGAL


Foram anos de aprendizado, na universidade e no empório, de meu pai. Aprendi a advogar e a comerciar. Sendo assim, já poderia trabalhar com meu pai. Por causa de sua idade, não viajava mais em demasia. Sempre que tinham de ir à África ou à Espanha, logo me prontificava, eram os locais em que mais queria estar.
Numa dessas viagens, quando voltei, minha mãe Maria havia exaurido. Já se encontrava muito doente. Nunca aceitamos a partida de alguém por mais anunciada que seja. Foram momentos difíceis para nós, os Costas...
Quando da morte dela, meu pai, juntamente comigo, ficara com a família do irmão dele, meu saudoso tio Antunes, todavia... por pouco tempo, ele já era pessoa de idade avançada; aguentou o tanto que pôde o impacto. Meses após, morrera... o ar português tornara-se úmido demais. O único e maior homem de minha vida... o homem, que amei e me tornou o que fui, havera morrido. Percebi então o quanto minha vida sempre foi melancólica e que não era tão fácil para eu poder ser quem fui. Quando morreu, acabou tudo. Fui embora. Fiquei em Coimbra até só os meus vinte e seis anos.
Tudo que era dele, trouxe o que pude. Não tinha mais nada para fazer por lá. Sei que também pertenço a Portugal, pois mortos meus lá não faltam. Escolhi o Brasil que era o local ao qual alguns contatos comerciais e religiosos estavam indo.
Deixei meu tio responsável pelas quintas, que me pertenciam por herança; não as vendi. Às vezes, raramente, saia daqui e voltava para visitá-lo e pegar minha parte nas finanças. Não sei que fim levou, pois morri. Menos o empório, pois não continuou por lá, o transferi para o centro de Salvador, apesar de morar em Nazaré.

XIV - UM POUCO DE MIM NA METRÓPOLE


Leitor, és o físico e eu, o metafísico. Nestas condições deve ser de frágil compreensão o que passei em minha vida, por todas as disposições que me dispôs, principalmente pela tez de minha pele.
A concepção racial de minha época áurea na tua dimensão define-se desta forma: se não é branco ou amarelo, é negro. Conheces outra raça, caro leitor? Caso me visses agora, se me materializasse, verias que não sou branco nem amarelo. Sabes o que é cacau e o que se faz com isso? Sua cor é o marrom e assim é a minha tez de pele e de minha mãe.
Há alguns muitos anos, existiam duas coisas: o branco e o negro. O pardo passou a existir na Nova França. Não encontrarás em lugar algum do mundo... ninguém... escrito num registro pardo. Somente nesse maldito país. Há a raça amarela, a raça branca, a negra... qual outra conheces? Não existe raça parda! Isto é uma maldição desse país! Se o indivíduo não é branco ou amarelo, é negro.
Meu pai Costa pensou melhor que eu seguisse a carreira de Bacharel em Direito. Então foi a minha formação acadêmica em Coimbra. Nessa época em que vivi e estudei, as pessoas que compunham a sociedade intelectual e política da burguesia dividiam-se em dois grupos: a parte dos prosadores romancistas, que foram aqueles que mais tiveram destaque; e os que partiram para o lado do lirismo, que não foram tão felizes tanto quanto aqueles. Isso pois o povo vive, até o dia de hoje, de histórias. Toda história que trata da vida cotidiana, do que aconteceu, buscando a verossimilhança, de alguma forma, é a de maior sucesso. A identificação do corriqueiro, com busca da realidade, representação, purifica e emociona os leitores – e bem sei que minha história não segue tais paradigmas! No entanto, foi uma época, indiscutivelmente, dominada pela poesia. Conheci muitos desses poetas.
Agora, não penses que foi fácil para eu estudar nesse meio, pois não foi. Não foi fácil pela questão... minhas características físicas, maneira conforme eu era, pois, por essas qualidades, sempre fui visto, digo em primeira instância, à distância. O dinheiro fala mais alto e o do meu pai judeu falou vorazmente, retumbantemente.
A falsidade era muito grande. Muitos deles que estudavam em Coimbra não tinham nem o que comer. Às vezes, chegava-se em determinados lugares nos quais se representava, declamava-se, recitava-se para ganhar algum dinheiro. Eu não! Não precisei fazer isso. Muitos deles ajudei. Precisaram do meu dinheiro. Então era o amigo que mais queriam. Nos albergues, nas estalagens às quais fossem, bebiam desenfreadamente; era uma época de ostentação de luxo, de luxúria. Em muitas dessas vezes, nas quais bebiam, bebiam, bebiam e... bebiam, todos eram presos. Não tinham nada, nenhuma meia pataca para pagar o alto consumo e retomar a consciência perdida pela embriaguez.
Essas mesmas pessoas e outras não eram tão limpas, requintadas, conforme podes crer. Já te disse que na corte limpava-se a mão suja no gibão? Comia-se de mão suja igual a bicho doméstico. Bebia-se muito em taças de cobre e essa aniquilava a vida de muitos com muita facilidade. O vinho conseguia, durante um bom período, corroer o cobre e, assim, as pessoas o ingeriam. Depois disso tudo, é fácil imaginar do que as masmorras viviam cheias e que a mendicância era enorme.
Apesar de estar numa cadeira distinta da deles – fiz Direito e muitos, Medicina, Letras e Arte – encontrarás pessoas formadas daquele tempo, sendo da minha área juntamente com os de Filosofia e dessas outras.
Eu nada escrevi. Um romance, um conto, uma novela, uma poesia, não escrevi nada. Por isso e por não querer viver naquele mundo de lirismo, vim para o Brasil colocar o pobre na cadeia e o rico em liberdade. Colocar o inocente na prisão e o culpado do lado de fora das grades, desde que tivesse dinheiro, me pagasse muito bem e adiantado.
Aprendi na Europa que o homem vale pelo que tem e possui. Nesse lugar, naquela época, havia um ditado: “o hábito faz o monge”, dessa forma, o homem é aquilo que veste. Costumava-se dizer que a primeira impressão é a que fica. A elegância é primordial.
Vivi com muitos deles nessa época, contudo, o que lhes disse, repito a ti: não eram tantos meus amigos, tinham uma cadeira e eu, outra. Convivi mais com os que vieram para aqui ou que já estavam. Com os de lá, curto foi o tempo de convívio. Tão logo me formei, fui-me embora exercer minha carreira.
Dessas amizades de Portugal e Brasil, posso falar, contudo me restrinjo a dizer que vivi numa época contemporânea a pessoas nas quais me atenho a poucos nomes como Eça de Queiroz, Gonçalves Dias, José de Alencar, Maximiliano. Falsos e demagogos. Não gosto de Alencar; era a favor de uma pseudo-libertação dos escravos de forma gradativa, que merda é essa?! Diziam que Machado era um negro embranquecido, hipócrita; só escrevia para a burguesia, exatamente assim. Castro Alves, o poeta da liberdade, esse me apetecia. Entrementes, esses escritores citados, no que diz respeito à escrita e suas obras, em sua maioria, foram muitos talentosos.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

XIII - ALÉM DO RIO IBER



Mitologicamente, aprendi, em meus ensinos sobre a história de minha terra portuguesa, que estudiosos asseveram que havia um rio chamado Iber, no qual os gregos navegavam e referiam-se aos povos de lá encontrados como “os que viviam além do rio Iber”. Esse povo ibérico resultou de um milenário processo de miscigenação e de constantes aculturações. Na mesma perspectiva da afirmativa, Ulisses, da Odisseia, de Homero, teria chegado à nossa península, tornando-se o ancestral precursor da predestinação das navegações.
Descobri recém-nascido Portugal, terra que surgiu com a reconquista cristã, pelo Mar, que marcou o imaginário português, o meu. A identidade forte dessa terra sempre foi a navegação. O mar era a estrada – “Aqui, onde a terra acaba e o mar começa”, Camões. No entanto, o mar portuguez acabou. Findaram o enfrentamento do mar, a conquista de novos portos, o projeto de Colombo, os descobrimentos e os heróis. O mar é salgado de tanto as pessoas chorarem a partida de seus parentes. Todo porto é uma saudade de pedra, nossa perdição!
Em Portugal, a dicotomia entre o mar e terra foi importante para o deslocamento de uma interpretação: grande é o pequeno e infinito, o finito. Se moras numa pensão, não consegues ficar nela, mas, se vives numa mansão, não desejas sair dela. O ser humano não consegue viver em sua própria condição física; querendo sempre ser outro além de si mesmo. Tende sempre a imaginar ou flutuar como se saísse do próprio corpo para conquistar tudo aquilo que sua prisionável matéria não permite a ele, infelizmente. Por isso o homem deseja transcendência espiritual, o físico é uma prisão particular. Mas... carpe diem, adapte-se e viva bem o seu corpo. Assim é Portugal. Um espaço pequeno, ao qual o mar sempre foi uma estrada e não o sustento. Um lugar só existe em relação a um corpo. O saudoso mar fez Portugal ser o que é. Sou homem a partir de que vejo a mulher, como espírito a partir da matéria. Só quem me fita tem noção de quem sou. Quando somos pequenos, temos lembranças de lugares grandes, contudo, quando retornamos percebemos que não eram tão grandes. Foi dada a ilusão de grande ao que é pequeno, maravilhoso ao que é vulgar e infinito ao limitado. Com o amor também é assim e, como exporei brevemente minha sina, soube muito bem nos nervos. Por fim, tudo não passa de uma eterna dialética.
É... mas tudo não passou de simbologia. Esse mundo milenar à espera de um Deus, de um messias, de um amor verdadeiro, torna-se discurso épico, que canta o presente para glorificar o saudoso passado e fundar o futuro. Para mim, espírito, nada disso importa! É justificativa de malogrado. Segundo uma professora de minha adolescência - infelizmente não me lembro do nome dela -; glorificar o passado em contraposição ao presente é viver o presente frustradamente. No meu caso, é melhor apegar-me ao passado.
Então, ainda no ano de 1840, cheguei à Finisterra, pois, à visão europeia, era o fim do mundo, não sendo considerada, por alguns, como Europa. Meus pais moravam em Coimbra e para lá fomos. Na casa dos Costas, para a sociedade coimbrã, Judite, a governanta, auxiliava Dona Maria Alencar em casa com seu morgado. E assim cresci, estudei e tornei-me homem. Não me lembro de passagens de minha infância, portanto, espero que não me perguntes. Adiantar-me-ei no espaço-tempo à maior idade.
Tudo isso fez parte de uma história. Alguém tinha de criar-me. Não seria alguém socialmente nem frequentaria lugar algum sendo filho de um mouro e uma judia, exatamente.

XII - LISIEUX, MEU PRIMEIRO BERÇO



Nasci na França, na cidade de Lisieux, pela coincidência de minha família hospedar-se lá antes de retornarem, enfim, a Portugal. Essa terra antiquíssima, situada na região da Normandia, povoada desde os tempos romanos, foi a sede episcopal da Revolução Francesa.
Lá meus pais ficaram hospedados na casa de um conhecido da família, o senhor Jean-Paul, que viabilizou meus registros. Pelo grau de relevância que tem à minha história, convencionalmente já disse tudo sobre ele. Portanto, só ressalto que não tenho dupla nacionalidade, e sim pelo menos três!
Nesta cidade, que obteve posteriormente fama mundial, meus pais permaneceram pouco tempo. Após algumas semanas, os Costas, a governanta Judite e seu acompanhante Jônatas viajam rumo à histórica Lusitânia.
Foi nessa terra que minha vida como um Costa teve início. Aqui sucedeu todo o tratado entre os meus pais e minha mãe, quando me deixou ser filho de minha mãe Maria. Como disse, esta era fraca e não poderia conceber um rebento. E como viajavam bastante, a sociedade não desconfiaria da real procedência do guri. Judite, a governanta, a mulher que também tomara conta de Maria do Socorro, seria a ama-seca, bem, melhor ficaria “ama-molhada”, já que cuidara de mim amamentando.
E dessa forma eu vivi. Judite deixou Juan de Córdoba, criou-me como um Costa, a partir do dia que nasci numa data invernal, em Lisieux, na França.

XI - MINHA FAMÍLIA - MINHA CASA PORTUGUESA



Resumindo, Judite conheceu Juan, quando Costa, meu pai, foi a Cádiz. Desde então, não se separaram. Entretanto, ela jamais poderia segui-lo e ele, a ela. Merda de questão cultural! Também não sei dizer se Juan voltou a Marrocos ou não.
Enfim...
Minha mãe disse que nasci no inverno, se não falha a memória. Se não foi em fevereiro, março... não lembro. Sei que era inverno em Lisieux. Nasci num frio dia europeu, na velha França.
Pronto, agora surgi materialmente, como corpo.
Por meu pai ser chamado de Juan, recebi o nome João, e Costa herdei do meu outro pai, que me registrou e se dedicou-me. Morei em Salvador baseado nisso tudo com minha mãe Judite. O nome do homem que me criou era Mathias Antunes Costa, Mathias com th. Isso mesmo... isso mesmo. A mulher dele, minha mãe, chamava-se Maria do Socorro Alencar, um nome desgraçado de grande. Não sei o porquê de as mulheres terem nomes tão grandes... Maria do Socorro Alencar de Almeida Costa, isto mesmo! Era o nome. Agora, sacanagem é que Judite era só Judite; não tinha nome no final, era Judite de uma... uma... tribo e só. Era da família tal. Não tinha essa questão toda de nome.
Meu pai deveria ter um metro e setenta e três centímetros de altura, barrigudo, bigode grande emendado à costeleta, olhos pretos. Tinha uma caligrafia esplêndida. Com ele aprendi o célebre ditado: “quem não rouba nem herda, nunca sai da merda”.
Assevero-te, leitor, que meus pais adotivos não foram para o Brasil comigo. Ficaram em Portugal, pertencendo a terra. Quando vim para o Brasil, minha mãe, aquela que ficou sendo-a, já havia morrido. Ela era de uma cor branca meio escurecida, é... Maria era uma portuguesa dos Açores. Era baixa, redonda, bigode, tinha muito corpo, era gorda, pois tinha de ser, senão não teria valor. Magras eram as putas. As mulheres de casa eram de tetas grandes, aparentando senhoras. Era escurecida com um sinal no rosto, próximo à boca. Deveria ser mais ou menos da cor de quem... da...
Caso procures, encontrarás muitos povos de Portugal dessa cor, muito, muito mesmo. Não havia só branco-branco, branco-branco de maneira nenhuma, nem todo mundo era branco, de pele branca. Não haveria como existir somente branco. Eu não nasci preto, somente meus cabelos escorridos que poderia amarrá-los e fazer rabo de cavalo... eram iguais ao do meu pai Mathias e não ao de Juan de Córdoba. Falo mais daquele do que desse, pois foi apenas uma mera casualidade. Foi a junção de órgãos sexuais - não sendo vulgar, como dizem - que me fez surgir. Não o conheci pessoalmente e não sei se no sonho era ele mesmo ou uma imaginação bem guardada minha no inconsciente dos relatos de Judite. Creio que não me conheceu, tampouco tomou existência. Se tomou, não importa; meu pai é o Costa! ... às vezes, falo uma coisa neste momento e daqui a pouco não consigo recordar mais. Escusa-me... me desviei do percurso do meu propósito, perdi a linha do raciocínio destinada a este capítulo.
É... quando puder, retorno.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

X - ÚLTIMO AMOR



Os imutáveis e pseudomeses primaveris a um outro mês haveriam de dar lugar. Cedo ou tarde outra estação assumir-se-ia. Pois, segundo a filosofia, a mudança é inevitável.
Meu pai adorava sua tribo, sua raça, sua liberdade; desde criança tivera esses ensinamentos, nunca havera escondido sua condição. Recebera uma educação meticulosa, à maneira do pai e dos cãs. Era nômade porque era tradição o indivíduo procurar o conhecimento junto a todos que pudessem compartilhá-lo. Por isso, não poderia ficar para trás, era o sucedâneo, possuía o sangue, era o desejo e toda uma descendência. Por conseguinte, apaixonara-se por uma mulher do mundo, do mundo de que ele não fazia parte, do mundo que a ele não era permitido a permanência definitiva.
Percebe, o existencialismo é cruel e truculento; não permite que haja diálogo e acordos que contemplem a duas partes: dois caminhos distintos, a dicotomia. Isso ou aquilo. Maldito seja! Ou minha mãe acompanharia Juan ou vice-versa. Porém, um não seguiu o outro. Veredas desiguais seguidas.
No início, a família não havia aceitado o envolvimento, no entanto não tinha o que fazer. Ela gostou dele e era uma mulher livre mesmo sendo governanta. Só que os Costas estavam de malas prontas para uma breve estada na França.
Enfim, poucos dias após, Judite, com os Costas, viajara rumo à Lisieux, deixando para o pretérito o seu amor. Em momento algum, hesitou ou esperou alguma resposta dele; como já disse, era decidida e austera em seus ideais. Ela jamais negou seu incondicional amor, mas omitiu que havia sido fecundada. Com sua partida para Lisieux acabara a união ilícita advertida pelos Costas e a tribo.
Entre Juan e Costa não havia relacionamento. Só comércio, no qual aquele conhecera Judite. Costa, o homem que me criou, nunca o conheceu pessoalmente, se me lembro bem. Os Costas já se encontravam a caminho da França quando ela partira com meu tio e outros, após ajeitar as coisas comerciais pendentes. Acredito que Juan nem soube que foi meu pai. Ele só não podia ficar com ela, porque era uma judia e ele, um cigano. Não poderiam se juntar. Vede bem, Juan não foi um cigano como se fala hoje. Vivia em tendas, coisas muito grandes. Era um conquistador de tudo que se possa imaginar – terras, lugares, mulheres etc. Criava muitos cavalos, dos quais tinha um fascínio incrível, como já havera dito.
Penso que minha mãe não voltou a vê-lo. Talvez tivesse morrido sem saber que nasci, caso tenha sabido da gravidez. Ou então achas que se eu soubesse do paradeiro exato dele não iria atrás ou ele... mandado me buscar?
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Com certeza que teria! Mantive os pontos comerciais na Europa e África também por isso.
Vê que, de Lisieux até o dia de minha morte, não se falou mais dele, à exceção das vezes em que indaguei sobre a existência dele, desde após minha mãe ter me revelado a minha real procedência.
Foi apenas um mero acontecimento. Do dia que Judite deitou-se com ele, dos tempos que se encontraram e que saiu da Espanha para a França, não soube nunca de minha mãe ter escrito para ele ou ter comentado sobre o nascimento. Também não poderia, porque o Costa já havia me registrado. Esse me bancou em toda minha vida, não foi Juan de Córdoba. Fui para o Brasil com o dinheiro dos Costas, com o nome dele.
Que aceitação teria eu? Judite é que não poderia me assumir. Ninguém sabia dela como minha mãe. No Brasil, ela se vestia tal como poderia vestir-se, andava normalmente como os daqui. Ela não poderia ter filhos, sequer se apresentar, de maneira alguma, à frente da sociedade como realmente era. Não poderia ser; de que jeito seria? Mãe sem pai? Juan também não poderia assumir um filho; como criaria? Jônatas?
Quando nasci em Lisieux, minha mãe sabia que, estando com os Costas, eu estaria bem. Como viajavam muito, logo me achariam filho legítimo deles, caso contrário, considerar-me-iam filho do mal, do adultério entre o Costa e Judite. Pelo fato de a mulher do Costa ser doente e fraca para ter filhos, foi comodável ficar como filho dela.
Enfim, meses depois de partir, num dia invernal – provavelmente entre dezembro a fevereiro – Judite deu-me à luz em Lisieux. Subtrai nove meses antes para estimardes o período da partida. Surgi para o mundo na França pela coincidência dos Costas e Judite estarem ainda por lá, enquanto Juan estava, possivelmente, em Córdoba, acredito.
Não sei se Juan, após meu nascimento em Lisieux, ficou, saiu ou morreu na Espanha. Ou se seguiu o povo que o acolheu, visto por mim em sonho. Caso seja esta última, provavelmente trocou todos os seus trajes para poder se vestir como os integrantes de sua sociedade. Entendo, então, que tenha feito moradia lá. Ele tinha pátria, mas ficou naquele lugar, porque se amasiou com Judite. Tinha de ficar; ela é quem não ficaria. Tinha de acompanhar os Costas. De Lisieux, onde me pariu e que imediatamente tornei filho dos Costas, fomos embora para Coimbra. Acho que não teve notícias dele, nem dela.
Calma! Deixa molhar minha seca garganta, pois falo demais. Quem sabe eu me recordo de algo que confunda a ti e me desdiga ou corrija...
Pode parecer gracejo meu, por conseguinte não é. Vinus est veritate. Após bebericar, agora me lembro. Juan despediu-se dela em Lisieux. É... ? Disse-lhe que não poderia ficar nem assumir a criança, pois não tinha como; Judite não seria aceita. E eu que pensava que o amor fosse transcendental! Idiota! Infantilidade! Culpa de minhas leituras, de uma época, de minha época. No entanto, a ironia que aprendi com estas mostrou-me a real e não verdadeira sociedade. Agora, se realmente não soube de mim, prefiro a versão de que tenha obtido ciência do meu nascimento.
Mas de algo tem plena certeza, leitor, faze constar que todos nós fazemos parte de uma família de beberrões!

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

IX - JUAN DE CÓRDOBA



Mas, antes de relatar as advertências e o consequente término do enlace amoroso, é indispensável esclarecer um dado que não te forneci sobre meu pai, no entanto iniciei-o sem êxito no sétimo capítulo.
Corroborando toda uma heterogeneidade, o marroquino Juan de Córdoba era cigano – entretanto um atento leitor já deveria ter percebido. Sim, era um gitano islamita, por isso toda aquela história sobre sua origem. Somente um antropófago cosmopolita poderia reunir diversas culturas, aproveitando-as concomitantemente.
Segundo a governanta africana, ele não usava brincos ou tapava um olho, quem usa esses apetrechos são piratas. Da minha parte, nunca ouvi dizer que um sarraceno usasse afins. Dizia ainda que somente conhecia o mistério das cartas por ser filho único; isso se realmente conhecia. Sua mãe não tivera uma criança mulher para ensiná-la o jogo da adivinhação, caso contrário, a ele não seria ensinado, pois esse jogo é destinado às mulheres.
Ele era um mouro que se trajava todo de branco. Usava um pano branco comprido na cabeça com corda presa ao redor dela. As suas vestes, quando andava, flutuavam, iam embora pelo ar. Eram enormes! Tinha um outro traje comprido que prendia na canela, vindo uma saia – assim chamo – abaixo dos joelhos. Quando me apareceu em sonho estava justamente com uma calça até a canela, com um pano ao joelho, uma blusa larga nos braços, um lenço enfiado na cabeça preso por duas cordas, um medalhão similar a uma estrela de cinco pontas no peito e um lobo branco ao seu lado.
Em sua época, estava havendo um conflito entre os que chamam de ciganos, na França e na Espanha. Tentavam expulsá-los à força. Havia uma luta muito grande por libertação, por um mundo melhor. Ele não pertencia àqueles ciganos que ali estavam, por isso é que não sei dizer se voltou a Marrocos depois do fim do relacionamento com Judite.
Estava na Espanha por causa de parte de seu povo. Não havia nascido naquela terra. Saiu de onde estava, Marrocos, para assistir à perseguição imposta ao povo dele na Europa, à sua dissolução: quem permaneceria ou partiria. Ali muita mistura houve. No entanto, quando Juan esteve lá, não havia mais esse grande desespero, houve um abrandamento. Os interesses mudaram. A dissidência que houvera era por causa das perseguições a quem ia para um lado ou para o outro. Leitor, ajuda-me! Procura saber o tempo que Juan de Córdoba viveu. Deve ter algum relato ou lenda sobre esse homem. Se procurardes no meio dos ciganos, encontrá-lo-ás. Essas pessoas doidas que ficam chamando, arbitrariamente, por cigano, de tua época, que o respeitam muito, indaga-os. De repente, quem sabe, dirão que estou errado, azeite! Importante é a realidade e não a verdade.
Esse místico abaporu, meu pai, foi o cigano árabe Juan de Córdoba. O povo espanhol havia nomeado-o assim quando o recepcionou. Provavelmente, seu nome verdadeiro em árabe deveria ser de pronúncia esdrúxula ou de difícil articulação oral aos gaditanos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

VIII - PERÍODO DE ENCONTROS



Foi um longo período de encontros. Eu não nasci do primeiro que tiveram. Eles ficaram bastante tempo na Espanha. Caso não me engane a mim mesmo, permaneceram umas duas a quatro primaveras. Não me lembro, não posso averiguar-me do que aconteceu nessa época.
Hoje, data de tua vida, leitor, explico a ti o que não entendia, enquanto vivo, sobre aquilo que minha mãe me tornou inteligível do amor, da vida e da morte.
Dizia-me ela que desfechamos a união, continuação dos corpos, após nascermos e desligarmo-nos do corpo materno. Essa sucessão reacontece quando o corpo morre, pois volta a fazer parte de um todo: da terra e do cosmo. Os ocidentais não percebem a experiência positiva da morte. Somente na morte do próximo é que veem a continuidade com o Universo. Possuem um fascínio, uma sedução e terror pelo corpo morto. Sempre que há um, não querem olhar, porém acabam a olhar. Para eles é o fim de tudo, por isso temem a morte e a quem ela abrigou. A vida acaba, mas, para povos como o dela, a união cósmica continua. E é por isto que festejam a morte de um ente querido, mesmo que a perda os entristeça no início. A morte uterina que dá o novo ser à vida na Terra é o fim para o início da vida. Não temem a visita em espírito ou em sonho; saúdam.
O amor na sua plenitude do ato sexual também faz parte da descontinuação do ser como a morte. Porém, no humano jogo erótico, isso acontece por alguns eternizantes segundos no orgasmo, que transforma os corpos em ilimitados, perdendo-se a noção do eu, da outra, do que é meu ou do que é dela; os dois são apenas um. É a fusão entre seres. Para ela, é a volta ao natural. E eles voltaram muitas vezes.
Concluo, então, que minha morte é orgástica! Nem depois de corpo morto deixo de saciar-me! Enche a minha taça e me acende um charuto...
Prosseguindo com os destinos dos encontros...
A felicidade amorosa dos dois amantes era clandestina. Estava presente, mas não poderia ser desvelada para não ser fulminada. Ela deveria ser guardada e não comunicada ao mais que não aguentassem. Quando uma pessoa demonstra o seu sentimento para outra, acontece o inevitável: a desestruturalização. Por isso, deve-se calar a intensidade intrínseca para se continuar estruturalizado. Por não conseguirem esconder o sentimento mútuo, foram desequilibrados. Os Costas e a tribo, ambas as partes, advertiram os constantes encontros que os amantes mantinham. 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

VII - PRIMEIRO ENCONTRO

É... no quinto capítulo, eu esqueci de desvelar que meu pai, de acordo com sua amálgama e descendência genealógica, era muçulmano de raça provavelmente impura, no entanto, deixei pistas no sexto. O povo de meu pai, que estava na África e que com ele foi para a Espanha, soube assimilar a religião maometana aos seus costumes, durante todo estado de sítio no Marrocos. Ele, um agareno não muito ortodoxo deixando a desejar um pouco uma religiosidade, por outra razão culminante (esta tem a ver com os originais índices sanguíneos dele que revelarei com o prosseguir da conversação) não poderia, de maneira alguma, enlaçar-se matrimonialmente com qualquer mulher que não pertencesse à tribo, sendo ela de qualquer credo ou prosápia que fosse. Ele tentou dissuadir, porém...
O fato real é que Juan de Córdoba já possuía a sua pretendente desde pequenino, pois, acordos firmados entre sua família e a de um tio longínquo exigiam um casamento cedo. Contudo, até a maioridade, não havia se casado e muito menos em tempo algum havia sabido quem ela fosse.
Meu pai tinha agregado a ele um homem de confiança, uma sentinela. À frente do assunto, verei se consigo lembrar do nome do amigo de Juan, inclusive, eu o vi em sonho (brevemente o contarei), sendo aquele que fazia tudo para ele, além de ser intérprete na Andaluzia, pois meu pai não falava espanhol. Meu pai mesmo era um homem intocável. Eu ainda não lembro o nome do clã... não lembro, mas deve ser alguma palavra parecida com “Eskalom”. Espera um pouco... caso não esteja ludibriado por minha debilitada memória, o nome dele era Vítor ou Igor... não lembro. Enfim, esse é quem o acompanhava, tomando conta de sua tenda e seus cavalos. Conheciam-se desde crianças. Era um mourisco, conforme ao modo de Juan e da aldeia. O filho único, digo eu do hipotético xeque, incumbiu-o de descobrir quem era aquela glamourosa, airosa mulher fatal e bela comerciante que não lhe tinha desviado o olhar, causando um embate efusivo no comércio. E quando, nesse exato instante, quase do seu ginete caíra hipnotizado pela aquela caríssima joia, se não fosse pelo auxílio de Vítor ou Igor sustentando-o acima do cavalo. Então, ela sorrira delicadamente, abaixara a cabeça e saíra. Respectivamente, perderam-se na multidão, tendo Juan conquistando a raiva dos transeuntes nos quais esbarrara com sua falta de atenção... perdão, com a atenção voltada a algo relevante.
Deslocados alguns dias, o homem de confiança (repito de confiança, pois, era sabedor de todas as inadimplências feitas pelo meu pai em relação às normas de seu povo no que tangia a conquistas amorosas), num seco e matutino dia, conseguira encontrá-la próxima ao lugar da primeira vista (não faço ideia do que ela estaria fazendo distante da casa e do empório do Costa a essa hora, espero que isto não importe a ti. Não te esqueças de que reconto uma história narrada a mim). Então a seguiu até o empório do Costa que não ficava distante das tendas de comércio da sua respectiva ascendência.
Horas depois de demarcar o local, Igor ou Vítor retornou ao empório português e lá somente estavam Judite e seu amigo judeu responsáveis pelo trabalho. Acredito que os Costas devessem ter saído para cear em casa. Então ele se achegou como um mercador interessado em tapeçaria. Quem o atendeu foi Jônatas. Com este, ele, com mil artimanhas a executar como uma felina que estando no cio foge do conforto da casa para encontrar saciedade com o primeiro macho que encontrar, perguntou a quem pertencia a propriedade comercial, quem era a mulher que trabalhava com ele, quais mercadorias eram manuais e se ela fazia-os. Resumindo, informou-se sobre toda a situação engenhosamente, e o judeu inocentemente deu todas as coordenadas a respeito de Judite. Disse, ao ingênuo judeu, que voltaria no dia seguinte para realizar a compra e saiu. No consecutivo, voltou no mesmo horário para que encontrasse os dois a sós com os demais empregados, mas sem os patrões, e de fato aconteceu. Por dias contínuos, vivenciou aquele lugar, tornando-se freguês e amigo de Judite.
Continuamente passando por mercador, pediu a Judite que o ajudasse a escolher um presente especial ao seu amo, um príncipe, emir da Arábia de quem a ela falara muito desde sempre, fato que logo seria desmascarado. Ela apresentou um belo tapete que havia acabado de fazer, em dias recentes, no seu tear como formosa aquisição para presente e ele o comprou.
Noutro dia, Igor (para não repetir os dois nomes toda vez que necessário, escolho esse) voltou ao comércio, sempre na mesma hora da primeira vez, com flores, incensos e um presente para Judite, em respeito à obra de arte feita por ela. Era um caduceu de cobre, símbolo de prosperidade e paz: um bastão com duas serpentes enroladas e com duas asas na parte de cima; em homenagem a sua competência comercial. E disse que seu amo adoraria conhecê-la. Ela adorou os agrados (essa passagem fez me lembrar de que ela tinha um fascínio por qualquer animal que rastejasse e em queimar uns pós que até hoje eu não sei o que eram). Assim, convidou-a para uma festividade há duas luas breves organizada pelo seu povo antes de prosseguirem para Córdoba (onde uma fascinante cultura hispano-marroquina surgiu), pois este seria o lugar a Juan fazer moradia no ocidente e por seus antepassados serem de lá. Judite, como atônita ficou com os inesperados presentes, aceitou o convite dizendo que iria com Jônatas, mas que não ficaria muito tempo, pois tinha os seus afazeres na casa Costa.
Chegado o dia festivo, ao anoitecer, Igor buscou e levou-os ao acampamento agareno amando de Juan de Córdoba.
Naquela alegre noite, a tribo comemorava na primavera a Lua Cheia, isto porque, para esse povo, o destino está escrito nas estrelas – Maktub. Em volta a uma fogueira, espanholas dançavam flamenco para o visitante Juan ao som de alaúde e de palmas. Dançavam também uma música folclórica, do norte da África, a marroquina Chikhat. Tocavam um instrumento similar a um pandeiro. Para comer na ágape, não faltavam iguarias: assados, frutas cítricas, mel, maçãs, pêras, damascos, uvas, ameixas, enfim, muitas frutas, até do mar. E tudo isso regado a muito vinho e alegria. A fogueira aquecia os corpos e as choupanas ao frio ar livre noturno. A tudo isso a sudanesa, que estava com Jônatas a tiracolo, mostrava-se perplexa e admirada. Ficou mais ainda quando foi apresentada a Juan, quem vira a dias no comércio, mas que já bastara para se apaixonar por ele. Assim me disse.
A partir de então voltaram a se encontrar com deveras frequência.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VI - OS POVOS DE MEUS PAIS CONSANGUÍNEOS

Meu pai era descendente de um povo do oriente que havia surgido na civilização hindu, uma das mais remotas culturas urbanas conhecidas na Índia, e que havia sido absorvida pelo povo Caldeu e assim por diante. Eu não tenho condições de afirmar para ti que isso é verdade ou mentira, pois eu nunca vi um caldeu no plano natural e muito menos no sobrenatural, não sei que povo foi esse, nem como possa sê-lo ou tenha sido.
Segundo Judite, antes dos caldeus subjugarem a Judeia, meus ancestrais paternos haviam invadido culturalmente e espiritualmente um lugar, que hoje é chamado de Israel, onde a maioria da população era judia, todavia, alguns com o advento de diversas ocorrências históricas converteram-se ao islamismo. Dizia que eles se tornaram descendentes de um homem que com o nome dele haviam batizado um determinado lugar, Canaã, antigo nome da Palestina quase totalmente ocupada pelos israelitas e judeus. Esse era filho de Cam, o ancestral dos povos africanos, é o que dizem, mas quem foi realmente Cam? Segundo meus estudos religiosos aplicados a mim na infância, foi o filho amaldiçoado pelo próprio pai por não o ter reverenciado num dia que estava completamente bêbado, como um gambá, e nu. Idiotice! Maldição essa, que está relatada no livro sagrado dos cristãos, a Bíblia, explicaria, então, todo o sofrimento passado pelos povos africanos? É vergonhoso, degradante.
A partir desse diante, o povo do meu pai que era palestino mesclou e adjuntou sua cultura com muitas influências, envolvendo-se com a do Egito, até chegar ao país Marrocos. Através desse, o Islão, que surgiu para o mundo como eclode a aurora após findar a turva e misteriosa noite, engenhadora de segredos mil, como em As mil e umas noites, penetrou no ocidente através do sul da Espanha pelo estreito de Tariq. Infelizmente, eu não estudei essa história e sua ramificação, estudaste? Recordo mui longinquamente de uma obra, Eurico, o Presbítero. O meu ensino sobre o povo do oriente foi bastante nacionalista e maniqueísta.
O marroquino Juan, meu pai, contou outras coisas, mas destaco para tal sequência do capítulo façanhas dos seus ancestrais mais recentes na Espanha Islâmica.
A expansão dos meus ancestrais paternos árabes sobre a Península Ibérica foi enredada e extensa. Os árabes do norte do Marrocos venceram os visigodos com ajuda dos bérberes convertidos atravessando o estreito de Gibraltar. Deste ponto, os omíadas pertencentes ao mesmo clã de Maomé, em Damasco, seguiram a conquistar vários lugares da Espanha, tornando-os muçulmanos e estabelecendo uma capital em Córdoba, província do Islã sob a soberania dos califas desse povo deles. A Andaluzia tornou-se uma mistura de etnias e culturas, em que conviviam árabes, bérberes, mossárabes (população cristã existente na península antes da invasão), judeus, ciganos e escravos com seus filhos que se converteram ao islão. A união entre agarenos, que se denominavam superiores, e bérberes não era mais a mesma; uma revolta ocorreu com a insatisfação social generalizada. Assim chegou ao fim a dinastia omíada e iniciou-se a da abácida capturando Damasco. Quando isto aconteceu, um emir escapou de lá fazendo uma longa viajem para a Espanha assistido por árabes fiéis aos omíadas. Logo, obteve o controle da cidade de Córdoba, reestruturalizando e declarando-a independente do califado central em Bagdá e ao califado abácida, no entanto, reconhecendo a hegemonia religiosa do califa. Tornou-se o emir da Andaluzia. Neste local, foi construída uma civilização em muito superior a qualquer outra até então conhecida do ponto de vista cultural, da vida intelectual e da grande mesquita de Córdoba.
Ao passar de algumas centenas de anos, por consequência de focos de resistência cristã, representando uma ameaça real ao poderio maometano, o governo islâmico pediu ajuda aos almorávidas, dinastia e seita medieval muçulmana bérbere do Marrocos, norte da África. Eles os assistiram exterminando a revolta cristã, porém, tomaram o poder para si próprios. Os almorávidas construíram um império, que abrangeu a maior parte do norte da África e boa parte da Espanha. Fundaram a cidade de Marrakesh, esta passando a ser a capital do reino almorávida. A Andaluzia foi transformada numa simples província do país africano. No entanto, não duraram muito tempo à frente do poder. Dificuldades e abusos econômicos geraram revoltas. Novos bérberes xiítas conhecidos por almôadas acusaram os almorávidas de corrupção e opressão. Eles conquistaram e deram fim às autoridades dos almorávidas. Os almôadas sitiaram e reconstruíram Andaluzia. Desta vez tendo Sevilha como centro do mundo islâmico no ocidente. Conseguiram conter o progresso da armada cristã. Entretanto, problemas e antagonismo entre forças contrárias internas debilitaram o califado Islão ocidental. Os reinos católicos de Castela e Aragão unidos por casamento restringiram-nos a apenas um reino-estado fundado pelos próprios mouros, tornando-se o mais prestigiado núcleo da cultura muçulmana na península, ao sul da Espanha. Com as progressivas conquistas territoriais cristãs, os mouros renderam-se a elas. O último reduto, Granada, foi invadido, sendo esse o tiro de misericórdia para a reconquista e término da dinastia muçulmana no ocidente. Mas em hipótese alguma, o Cristianismo propagado pelos reis conseguiu desenraizar a riquíssima cultura árabe contida no espírito dos filhos dessa terra do poente. Mesmo porque, os marroquinos e mouros (árabes em geral) possuíram muitas mulheres para dar fim às dinastias e à linhagem sanguínea inimigas, além de raptarem mulheres para desposarem. Fizeram muito isso. Assim ficaram enraizados lá os costumes e famílias que também compraram e adquiriram muitos bens. Muitos se converteram, mudando seu grupo religioso em prol da permanência no país.
Corroborando mais a história, minha mãe dizia que meu pai vinha de uma família amaldiçoada e que jamais eu dissesse. Esta é a única informação da qual tenho certeza sobre a procedência dele: ele e toda família eram oriundos de uma tribo considerada maldita desde os fatos do princípio até os da atualidade.
Eu desconheço essa mesclagem toda, a começar da Índia, e nem sei decerto como ele foi parar e o que fazer em Cádiz. Sei que sou o narrador, mas, por favor, não me comprometas! Anseio que suportes com resignação requerida a nervos de aço, porquanto, estou morto, a que me adiantaria reflexionar? Eu não desejo. Agora, chegará o momento para reflexões. De acordo com o que sei, só me há o quê para contar-te.
Agora, passando para a história de minha mãe, não entendo até hoje essa ênfase na diferenciação das origens dos dois; a dela é quase idêntica à dele!
O povo de minha mãe não foi respeitado. O único povo do oriente que teve seu devido respeito foi o egípcio, pois escapou de ser considerado negro (entretanto, dizem que as várias rainhas da dinastia egípcia dos Ptolomeus, chamadas de Cleópatra, eram negras), os outros não... não! Seu povo também viveu em Israel. Ela era descendente de Sem, irmão de Cam, pois dizia ser de uma tribo semita, mas como chegara ao maior país da África, o Sudão, disto não sei. No entanto, aprendi que a histórica Núbia, que era grande parte do Sudão, é camita. Mas ela dizia semita e disto sei muito bem, lembro-me de quando comentava muito precavida. Contudo, se ela era filha de descendente de Sem ou Cam, filhos de Noé, não há provas, pois não havia nenhum registro e nenhuma separação territorial, levando em conta que ambos os povos residiram em Israel. Porém, para mim que fui seu filho, ela realmente era semita. Para ela, foram os próprios judeus, habitantes de Israel, que anunciaram o início e se converteram ao islamismo. Todavia, em apenas uma coisa meus pais concordavam, segundo minha genitora, além do amor mútuo: adoravam a um único Deus somente.
Não eram a favor de religiões ou de dogmas, pois são elas que causam toda divergência de ideias definidas como as intocáveis e corretas a serem seguidas pela humanidade de acordo com a vontade de Deus (este que eu, mesmo pós-morto, até hoje não o vi), ou melhor, de acordo com a vontade do Deusomem. A religião, como disseram posteriormente a minha vida na terra, é a substância que adormece a inteligência causando a alienação do povo. Quão grandiosa verdade!
Meus pais, por causa da paixão, tornaram-se prosélitos, partidários da cultura e religiosidade do outro.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

V – RETORNANDO A 1836


Costa, o homem que me criou, tinha um empório muito grande, enorme mesmo, em que vendia vários produtos. Vendia tudo que podes imaginar: panos, muitas fazendas e etc.. As especiarias que comprava na África e no Oriente faziam muito sucesso: muito cravo, canela, noz-moscada, gengibre, uma série de temperos, iguarias e essências. Ele comprava muitos vasos de procedência oriental, muitos vasos mesmo e, quando enfatizo isso, adoro girar o dedão de minha mão direita aberta na palma da esquerda também aberta, simbolizando... tu sabes o quê. Para isto foi a Cádiz, era um próspero comerciante. Tinha título de Dom, era um homem bem-sucedido nos negócios e bem integrado na sociedade portuguesa por tal posição social.
Meu pai (deste eu já tentei lembrar o nome... Frederico Antunes Costa... era este... não! Este era o irmão dele, mas já que lembrei desse, logo, logo lembrarei do nome de todos), por ser comerciante, viajava fazendo compras. Passava tempos longe, comercializando na companhia de seu irmão e Judite. Foi quando ela conheceu o homem que mudaria sua vida, semeando seu ventre, o mourisco chamado Juan de Córdoba pelos seus consanguíneos instalados na Espanha.
Retornando à corrida do ano de 1836, os irmãos Costa tiveram de voltar a Cádiz, lugar de desembarque de suas mercadorias, como era de costume, para receberem e verificarem as mercadorias, levá-las para outros empórios e comerciá-las. Judite já se encontrava no porto acompanhando minha mãe, a esposa do Costa, porque esta era doente e fraca. Ela sempre ia e vinha com a senhora Costa. Fechava as quintas, casas e viajava. Costa e Frederico, meu tio, chegaram a Cádiz e ficaram um respeitável período. Naquele tempo que estiveram no porto e que ela também esteve, tomando conta e vendo as mercadorias para eles, os destinos se cruzaram.
Obtiveram a informação da existência de ambos quando Juan fez tomada sua passagem sitiando a cidade espanhola juntamente com sua tribo nômade. Essa se instalara há poucos dias nessa localidade para reunir-se com seus descendentes que lá habitavam e ao comércio. Ele pertencia a uma família que partira de sua terra natal, Marrocos, para a Espanha juntar-se aos seus demais, depois de esta terra ter sido, há muito tempo, conquistada pelos árabes e, posteriormente, reconquistada pelos reis católicos, dando fim a 800 anos de poderio islâmico.
Era uma tribo nômade amante da música e da alegria que em suas atividades itinerantes vivia em cabanas, circulando, passeando e comercializando seus produtos de ferraria e de artesanatos, a maioria de cobre, porém, principalmente, seus cavalos de raça. Os homens dela eram opulentos criadores e barganhadores de ginetes. A família era de maioria marroquina de origem árabe, possuindo como comunidade comercializante os povos e tribos do oriente, os judeus, franceses, espanhóis e portugueses. À finalidade de comércio, esses marroquinos estavam no sudoeste da Espanha, entre gaditanos, na região da Andaluzia, onde encontraram facilidade para se estabelecerem. Mas muitos cautelosos com a inquisição católica espanhola.
Juan era o futuro chefe do clã e da aldeia, era o morgado, mas não sei se era xeque. Minha mãe descrevia-o, dizendo que ele não era um branco-branco, mas que sim bem tostado pelo sol africano, possuindo olhos verdes e quase dois metros de altura. Continha sua tríade de honra conceituada pela tribo: era corajoso, leal e generoso. Ele tinha amor incrível por cavalos. Carregava consigo um lobo branco, era o seu cão, mas esse era um lobo mesmo. Certamente, só sei que Plutão era o meu, sem raça. Um amigo leal que não me largou quando jazendo estava... não me deixou no meu último momento.
Eles haviam se conhecido por coincidência visual, em certa ocasião, num dia qualquer, em que ela saíra ao empório numa alcaçaria. Desta forma, minha mãe e Juan se cruzaram no comércio. Para ele, ali foi o suficiente, tornou-se insano e atordoado, querendo, como criança quando berra e chora por alguma coisa, imediatamente saber quem era ela, mandando seguirem-na. A partir de então, começaria o enlace. Para mim, minha mãe conheceu mesmo o marroquino quando se deitou com ele, quarenta e três anos antes do dia doze de junho de mil oitocentos e oitenta e três. Eu não me lembro agora se ela me contou isso um dia... antes que te ou me perguntes, leitor (espero lembrar-me durante a nossa conversa). Consequentemente, minha mãe que era judia e negra do Sudão, por ela Juan, meu pai, apaixonou-se e desta frascarice eu surgi.
Entretanto, para a tradição tribal, esse mouro haveria de um dia desposar uma mulher da aldeia do seu clã, conforme sua tradição e cultura. Haveria de manter a linhagem. Ele sabia da rigorosidade disso; era o seu predestinado destino, desde o ventre de sua mãe, assim deve ser com o primogênito. Porém, procurava esquecer, enfim, estava inebriado. Judite, aos seus olhos, mitologicamente era a figura da Santa Sara, a serva sudanesa, cujo mistério está relacionado às “virgens negras” e que também está ligado à Kalí, a deusa negra da mitologia hindu.

IV - A HISTÓRIA DE ANTES DE MIM

        Corria o ano santo de 1836, quando o prenúncio de minha vinda para este mundo teu aconteceu. Nesta época, minha mãe servia há um bom período de tempo a uma família tradicional. Era governanta de uma casa portuguesa. No momento, eu não me lembro, para este capítulo, a que família servia, mas era de Portugal – espero que adiante eu me recorde... não! Mil perdões! Tantos são os fatos não lembrados que quase cometo um grandioso equívoco. É óbvio que sei o nome da gente a quem ela trabalhava: família Costa. O que não recordo agora são os nomes dos componentes. Novamente, perdão.
Judite era uma pessoa sábia com nível cultural acima da média. Sabia ler, escrever, falar várias línguas e não somente uma: árabe, francês, espanhol, português e também o idioma dela, que eu quero me lembrar, mas como chamava o idioma peculiar a sua região... era aquele que os judeus semitas falavam, como se chama a língua dos judeus? Não era o iídiche. Sim, minha mãe falava aramaico. Com todos esses requisitos linguísticos, era governanta e intérprete. Uma grande negociadora, seu principal papel destacável nessa família. Era uma criatura de alta confiança, que, como disse inicialmente, ela servia há alguns anos.
Ela era sudanesa, contudo, não foi em solo materno que conhecera essa família. Foi num outro país negro, no Marrocos. Ela encontrava-se em Rabat, em um tempo bastante anterior ao do início do capítulo.
Minha genitora era uma mulher madura, livre e desimpedida, e seja dito de passagem que ela nunca se casou mesmo havendo pretendentes. Ela lavorava no comércio, sendo uma exímia comerciante. Tinha uma coisa grande que carregava consigo, que puxava... tinha... um tear. Entendia de fazer tapetes e roupas. Uma mulher bastante conceituada nesse meio, entretanto, por ser mulher, não adquiria sucesso. Os mercadores e compradores a evitavam.
Não se deu por vencida. Como vivia em uma comunidade judaica, procurou arrumar um alguém de confiança para vender seus produtos de artesanato e esta pessoa haveria de ser um homem. Em pouca sucessão de dias, persuadiu um judeu amigo seu, que por ela era enamorado e agradava-a em tudo. Não poderia perder a oportunidade de auxiliá-la nesse momento custoso em prol de sua aproximação dela. Com muito aferro, ele se empenhou, porém, foi um desastre, não tinha dom para o comércio. Deste tenho certeza da existência, pois foi ele que a acompanhou até o fim da vida. Devia ser da terra dela ou sei lá onde se conheceram.
O homem que andava e viveu com minha mãe e, posteriormente, comigo devia ter... era magro, possuía rosto fino, cabelos pretos e olhos grandes e esbugalhados. Ele não era negro. Nenhum de nós era negro, negro, negros não éramos. Quando trouxe minha mãe para o Brasil junto com ele, percebi que somente falava com ela dentro de casa, fora dela ele não falava, fingia-se de mudo. Nós não conversávamos mesmo, pois eu não entendia nada que dizia. Somente com ela comunicava-se. Quando ela rezava, fazia junto desse homem que comigo também conviveu. Era tanto judeu quanto ela. Ele tinha um nome engraçado. Ela chamava-o por um pequeno, não era grande... deixa ver se me lembro do nome dele... como chamava esse indivíduo... era rápido... Jônatas! Era como ela o chamava... isso mesmo, era Jônatas, ou era Jonas... ah! Era uma coisa dessas qualquer: Jônatas, Jonas ou Cônam... era qualquer desses. E ele atendia. Pelo semblante dele, não poderia ser igual a ela, pois havia muito mistério naquela vida. Agora, o que conversavam e rezavam? Sei lá!
Foi nesse meio tempo, em solo africano, que o senhor Costa e Judite se conheceram. Não me pergunte o tempo, porque este para mim está perdido. Mas o que um português faria numa cidade marroquina conhecida como o centro de pirataria muçulmana do Mediterrâneo? Comércio! O Costa era um grande comerciante liberal. Tinha empórios, vários. Adorava vender, encomendar e comprar. Levava todas as mercadorias compradas em vários pontos do mundo de navio para o porto da cidade espanhola Cádiz e de lá transportava para os empórios. Ele percebeu na judia todo um potencial na área comercial e não mediu esforços para adquiri-la em proveito mútuo. Convenceu-a a trabalhar para ele, levando junto o seu amigo de confiança. Então os dois viajaram com os Costas para Portugal.
Firmaram um pacto antes da viagem: a liberdade seria irrevogável e inquestionável, podendo fazer o que quisessem.
A sudanesa moraria com a família Costa, sendo a governanta, a administradora dos bens da casa, enquanto estivessem em Portugal. Quando viajassem a comércio, acompanharia a senhora Costa, sendo isso explicado ao povo, contudo, comerciaria afinco no empório com o senhor Costa. Em hipótese alguma, seria considerada sócia. Impossível!
Na casa dos Costas, haveria de ter um homem para tomar conta de todo um jardim, seria o jardineiro, uma pessoa pobre juntamente com sua esposa, supostamente Judite, trabalhando nessa casa. Desta forma, ela e o judeu encaixaram-se na família.
Agora, a questão que mais influenciou a aproximação e confiança dos Costas à Judite foi serem seguidores da mesma crença religiosa dela: eles eram igualmente judeus. O Costa tinha vários contatos internacionais, mas não somente devido às atividades do empório, e sim, porque tinha laços familiares e religiosos em lugares distintos. Acreditavam em Deus da maneira deles. Jeito este causador da morte de muitos portugueses. Vários! Não foram dois nem três. Muitos fugiram para o Brasil. Todos aqueles contra ao que a Igreja pregava eram queimados, não fazer o que exigia era o bastante. O senhor absoluto de tudo, a senhora absoluta de tudo era a Santa Igreja Católica, o que dizia era lei. Parece que detestava tudo que fosse progresso ou novidade que fugisse à sua compreensão e rédea.
A família continuava a viver em Portugal e para sociedade local havia se convertido ao catolicismo. Ficou conhecida como marrana, que é um termo pejorativo intitulando os cristão-novos suspeitos de prática às ocultas do judaísmo e esse era o caso dela. Costa receava muito a perseguição da inquisição atentada pelos fanáticos que queimavam as pessoas vivas em solução de não derramamento de sangue, obcecados pelos seus bens materiais adquiridos com o seu respectivo trabalho (deste, a burguesia justifica-se, dizendo que é o enobrecimento do homem). O mais incrível nisso tudo é que a inquisição já havia sido abolida em 1821, por decreto do Governo Revolucionário.
Aconteciam, em Lisboa, reuniões religiosas em casas particulares que serviam de sinagogas, porém, Costa procurava não participar com sua família, pois muitos dos seus amigos judeus desaparecerem e fugiram em prol do envolvimento. Ele não quis se envolver, preferindo não pôr a família em risco de vida.
A impiedosa inquisição foi encerrada, mas não significou liberdade de expressão religiosa, pois o catolicismo era a única religião oficialmente permitida aos portugueses. Por esses motivos, a família preferia omitir ser judia em Portugal e minha mãe reservava-se.
Meus pais, a família Costa (saberás logo o porquê de serem), viam a religião de outra maneira. Eu não! Era católico devoto de São Francisco de Assis.
Quando eles viajavam, o senhor Costa, meu pai, fechava e deixava a casa, passando tempos e tempos em outros lugares. Nas propriedades dele, empregados ficavam trabalhando. Ia a serviço de compras, fechamento de negócios, para depois recomprar e voltar com os produtos. Com ele e sua senhora, participavam da jornada o irmão dele, a acompanhante dela, e o acompanhante desta.
Desta forma aconteceria o meu prognóstico.